quarta-feira, 8 de abril de 2009

BUNKER DA ESPERANÇA – A TERTÚLIA

A esquerda, Artur Bual abraçado a Augusto Cabrita Pelos idos da década de setenta, após o 25 de Abril, surgiu já não sei bem como nem por iniciativa de quem, uma tertúlia bastante alargada onde pontificavam pintores, poetas, escritores, actores, jornalistas e por aí fora, gente famosa uns, outros, menos que tal, que às terças-feiras se reunia num almoço que se prolongava pela tarde fora nos baixos do Palácio da Independência, ao Largo de S. Domingos, em Lisboa. Era numa semi-cave bem funda, para a qual se entrava a partir do lado da rua das Portas de Santo Antão. Atravessava-se uma mercearia para uso dos sócios da A.D.F.A., que tinha a sua sede no Palácio e descia-se a uma espécie de catacumbas de paredes robustas, iluminadas por umas modestas lâmpadas dependuradas dos tetos, debitando uma luz amarelada. Ligado por uma porta e uma janela à sala dos ágapes, entrava-se numa pequena dependência que fazia de cozinha e onde todas as semanas dois convivas que voluntariamente se haviam oferecido na terça-feira anterior, cozinhavam para os restantes companheiros. Normalmente a comida nunca chegava para todos porque havia sempre quem trouxesse de surpresa mais um, dois, três amigos com os quais os improvisados cozinheiros não contavam. Esses acabavam a comer umas conservas de lata compradas à pressa na mercearia. Pão, vinho, azeitonas e mais um espaço nos bancos corridos havia sempre. Foi numa terça-feira que o Artur Bual me levou a almoçar a esse lugar fantástico. Tinha-me avisado de véspera, imperativo: Ouve lá menino... amanhã vais almoçar comigo a um sitio muito giro! É tudo malta porreira... um lugar de encontro a dar para o conspirativo... Sem dúvida. Lá estive com o Bual, tendo como grande surpresa a alegria de encontrar vários amigos de antanho, alguns, a viverem ou naturais do Barreiro. Era ali, naquele lugar, nos baixos do Palácio dos conspiradores de 1640, que às terças-feiras, homens e mulheres faziam acontecer poesia, desenho, pintura, oratória, discursos inflamados sobre tudo, menos política ou religião. Eram as terças-feiras mágicas da dádiva, da fraternidade, da solidariedade. Um porto de abrigo, de chegada, mas também de partida, após retemperadas que fossem as forças físicas e anímicas. Era um reduto, um baluarte, o Bunker da Esperança. Foi assim baptizado, por sugestão de Mestre Artur Bual. Gravado ficou numa das paredes, pelo grande Mestre da vida que foi o poeta e pintor Moita de Macedo, entusiasticamente aplaudidos de pé pelos presentes no final de um repasto, em que o António Monginho nos declamou uns quantos dos mais belos poemas vertidos da sua pena. Para o final do almoço, o actor Mário Pereira entendeu por bem que tínhamos de continuar a festejar o baptizado do lugar num espaço mais aberto e iluminado e, assim, fomos para o bar do Teatro Nacional D. Maria II ali quase ao lado, onde o saudoso actor Ribeirinho, atravancado de papelada numa mesa de canto, impunha algum respeitoso silêncio. Curioso, que dentro da aparente anarquia reinante no seio daquela tertúlia existia alguma aceitação de organização, tanto assim que quem presidia aos almoços, conduzindo as intervenções com uma sineta, era o capitão Calvinho, à data, presidente da ADFA que era consensualmente eleito pelos presentes no final do ágape de cada semana, para a semana seguinte. Ao longo dos meses que por lá passei, pude assistir a um crescente preenchimento do espaço das paredes daquela quase cave, por via de poemas, declarações de amor, citações filosóficas, mas sobretudo muita pintura, do Bual, do Kira, do Moita de Macedo e outros. Um dia, numa tarde de sábado outonal, noutro lugar mágico da vida do Artur Bual, o seu atelier na Amadora, uma cave de um prédio incaracterístico que frequentei desde criança, talvez a minha primeira e maior escola, perguntei-lhe da razão porque havia sugerido que a catacumba dos ágapes se chamasse de Bunker da Esperança. Respondeu-me: - Porque o sitio tem ar de bunker e as pessoas que o frequentam não estão ali com má língua, mas em redondo, em liberdade (...) dizem o que entendem sem censuras, de olhos nos olhos e são fraternos, mesmo quando não se conhecem (...) a malta que aí vem há-de ser assim. Pedro Manuel Pereira

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