sábado, 27 de abril de 2013

A REVOLUÇÃO FEITA POESIA


Por Pedro Manuel Pereira


Foi num fim de tarde de um sábado de 1975. No seio daquela «República» constituída pelo território que eram os ateliês na Amadora, dos pintores Artur Bual - meu saudoso tio - e Moita Macedo - meu amigo do peito – este, também poeta. Espaços ligados por uma porta improvisada, derrubada que havia sido parte da parede, onde por ela circulavam os vários amigos. Uns chegavam, outros estavam e outros... Partiam. Como porta de comunicação entre os dois ateliês, foi colocada uma célebre tela de Mestre Bual retratando o escritor Aquilino Ribeiro, que, com o tempo se tornou assim a modos que uma das suas imagens de marca.
O Miguel da Franca, excelente desenhador, cirandava entre quadros dissertando sobre qualquer coisa.
O poeta e pintor Hugo Beja, aparentemente angustiado por haver sido despedido pela sua última paixão, caminhava agitado, absorto, como um cão abandonado, de um lado para o outro.
O Bual, entre largas pinceladas de azul e vermelho, num aparente conflito com a tela, acendia mais um cigarro sem filtro, aparentemente indiferente ao que se passava em seu redor.
O Moita Macedo declamava-nos um dos seus poemas. Em pano de fundo, coesionando essa enorme tela onde todos cabíamos, ouvíamos a 5ª Sinfonia de Beethoven, debitada de um disco de vinil de 33 rotações do velho gira-discos empoeirado.
O Moita Macedo gritou-nos:
- Estão a ouvir-me? Alguém desligou a música. Calámo-nos como garotos apanhados em falta, olhando para ele de esguelha. O Hugo Beja interrompeu o breve silêncio que se fez, respondendo com ar teatral:
- Tem calma irmão! A malta está com ar distraído mas temos estado a ouvir-te com atenção, acrescentando:
- Afinal quando é que vamos jantar?
Jantámos não muito longe dos ateliês, numa tasca uma excelente comida alentejana, após o que regressámos às caves, onde nos aguardavam pacientemente sentados nos degraus exteriores, de mármore gelada e suja, às escuras – que as lâmpadas estavam fundidas – cinco indivíduos que eu não conhecia. Entrámos e foram-me apresentados. Para minha surpresa – não muita – era um grupo de jovens vagamente intelectuais que estavam a organizar um partido político. Ainda não tinham conseguido arranjar instalações. O Macedo e o Bual, generosos e altruístas como eram, cediam-lhes os seus espaços para se reunirem uma vez por semana. Aquela era a terceira ou quarta vez. Nessa altura, em consequência da Revolução de Abril de 1974 existiam dezenas de partidos políticos em Portugal continental e ilhas.
O líder era um jovem pálido, magro, encurvado, de lábios azulados por via de uma doença mázinha que o minava. Os que o acompanhavam, esses, não tinham aspecto muito mais saudável, diga-se em abono da verdade.
Perguntei a um deles se os militantes se resumiam aos presentes. Respondeu-me que eram mais umas dezenas, mas como era fim-de-semana, estavam ocupados com cenas familiares, namoradas e tal...
Segundo me confidenciou o Moita Macedo, tinha-os apadrinhado porque eram todos «bons rapazes, idealistas, a darem para a esquerda, vagamente socialistas com laivos marxistas».
O Bual perguntou-lhes:
- Querem beber alguma coisa? - O chefe do grupo respondeu por todos:
- Não, obrigado.
- E se acendêssemos umas velas? Sempre dá uma certa aura... Um ar de mistério! - Sugeriu o Moita Macedo.
- Isso é uma boa ideia. Respondeu o líder partidário.
- E nós? – Perguntei – qual é o nosso papel nesta reunião?
- É pá... Estamos aqui em redondo e isto é uma malta porreira... – Interveio o Bual.
- Pois... Nós não temos nada a ver com o partido mas estamos aqui em sã camaradagem... - Acrescentou o Moita Macedo.
Acenderam-se as velas, tornou a ouvir-se a 5ª Sinfonia e apagaram-se as lâmpadas.
O Bual voltou a pintar, já intuitivamente e o Moita pintava também de olhos em cima da tela. Eu, o Hugo e o Miguel da Franca viemos para a rua para o fresco discutir não me recordo o quê.
A reunião não durou uma hora. Depois, no carro do Miguel da Franca fomos com ele, o Moita, o Hugo, o Bual e eu até Lisboa, onde nessa noite havia um comício a pretexto de qualquer coisa e o Moita Macedo ia intervir como orador na sua qualidade de dirigente sindical.
Quando lá chegámos já uma multidão se espraiava a perder de vista entre o Rossio e as Portas de Stº Antão, onde das varandas do Palácio da Independência um indivíduo berrava palavras de ordem de punho erguido cerrado, aparentemente furibundo com ele mesmo, os patrões e o mundo.
Furando por entre a turbamulta, com o Moita a capitanear - ele que era um homem forte, maciço, com pera, bigode e cabelo grisalhos desgrenhados - conseguimos entrar no palácio e subir os lances da escadaria até ao 1º andar.
As massas, essas, não estavam muito entusiasmadas, até que o Moita Macedo assomou à varanda e com voz tonitruante gritou para a multidão através do microfone:
- Camaradas! Escrevi umas linhas para vos fazer um discurso, mas como não sei onde meti os papéis (e dizendo isto apalpava os bolsos em vão).
- Bem… Sendo assim, vou declamar-vos um poema de minha autoria. Este poema é para todos os que amaram sem nunca terem sido amados.  
Declamou um poema de cor, vibrante. Num momento fiquei estupefacto (ficámos), no momento seguinte a multidão batia palmas e gritava em uníssono e em delírio, empolgada:
- Queremos mais! 
E ouvimos mais um... E outro... E outro poema declamado com garra, com alma, com amor, como alguma vez naquele Largo se tinha escutado.
Nunca imaginei antes, ser algum dia possível ver e ouvir alguém galvanizar uma multidão com poemas de amor. Pois foi isso que eu ouvi, que vi, que vivi, que me emocionou até as lágrimas me marejaram os olhos e que gravei fundo na minha memória. 
Estávamos em Maio. Pouco mais de um ano passado da Revolução. Milhares ou talvez alguns milhões de portugueses viviam (vivíamos) ainda a Festa do Sonho transformada em Esperança de que em breve Portugal se tornasse num país mais justo, fraterno e solidário, onde fosse possível viver em LIBERDADE, numa verdadeira DEMOCRACIA em que todos nós, cidadãos, pudéssemos participar todos os dias como atores dos nossos destinos.





domingo, 14 de abril de 2013

A MÃE DA MÁFIA – LA GARDUÑA


Por Pedro Manuel Pereira

«A casa da Garduña é a noite profunda.
O alimento da Garduña é o segredo.
A vida da Garduña é o sangue dos seus inimigos
Assim seja

A mãe da Máfia foi uma sociedade secreta criminosa parida em Espanha, que numa primeira fase operou nesse país e nas suas colónias. Esteve bastante activa desde os alvores do século XV até ao século XIX.
A Santa Garduña nasceu em Toledo em 1412, cidade a partir de onde os seus próceres partiam para as incursões, isto é, para o assalto e o roubo das habitações dos muçulmanos e dos judeus em conluio com a sua mentora: a Inquisição. 
Porém, em breve chegou a Sevilha, onde o exponencial aumento populacional com o equivalente crescimento da pobreza justificou a sua implantação e desenvolvimentos a breve trecho.
A esta cidade afluíam as pedras preciosas, esmeraldas, pérolas, ouro e prata da recém conquistada América, com o consequente auge da indústria de luxo, da banca e da criminalidade associadas à riqueza em ascensão.
A Garduña, também conhecida por «la hermandad de la rapiña» foi, antes de mais, uma sociedade secreta criada para efectuar trabalhos de limpeza social convenientes ao poder clerical. O segredo mais bem guardado da Inquisição, o verdadeiro malleus maleficarum ao serviço da Santa Madre Igreja.
Os serviços fundamentais que prestou foram, indiscutivelmente ao Santo Ofício, comummente conhecido por Inquisição.
O seu nascimento foi bafejado pelo facto de nessa época viver na cidade de Toledo uma abundante população de não crentes e de conversos, que à hierarquia eclesiástica interessava controlar, intimidar e frequentemente castigar extra-judicialmente.
Foi neste contexto que esta associação de malfeitores prestou os seus primeiros serviços encontrando, assim, a forma de se financiar e obter poder, exercendo “justiça” sobre pessoas às quais a Inquisição queria chegar, porém, sem os entraves e o tempo que implicava um tribunal do Santo Ofício e o conhecimento publico das suas malfeitorias.
Graças a este contexto, a Garduña foi o primeiro caso conhecido de um grémio local de marginais, que se expandiu com êxito por amplos territórios aproveitando um novo enfoque baseado em tornar-se útil aos seus mandantes, corrompendo as autoridades locais e o poder local, para dessa forma agir em total impunidade.
Quando chegou o final do século XVI, a Garduña operava em diversas cidades do que é hoje Castilla la Mancha, o Norte da Andaluzia e Portugal. Porém, a grande oportunidade que se apresentou a esta associação para que continuasse viva e de saúde, foi no referido âmbito, dadas as deslocações maciças de muçulmanos no território peninsular, sempre em fuga e a sua posterior expulsão.
Os muçulmanos ibéricos representam o maior fracasso da história da Igreja em geral e da Inquisição em particular. Mais do que aquilo que reporta ao catarismo e às restantes heresias medievais.
Trata-se aqui de um amplo grupo populacional, que pese embora o esforço evangelizador e de aculturação sem precedentes ao longo de mais de um século, continuou inalteravelmente unido como conjunto humano, mantendo na clandestinidade as suas práticas, ritos e costumes.
Foi um fracasso gigantesco, inegável e humilhante para a Igreja, com lições, ilações e implicações perigosas no seio da cristandade.
Esta comunidade, ao contrário dos cátaros, não era suficientemente estúpida para enfrentar a Igreja e procurar o martírio. Só se mostravam autenticamente, na esfera privada das suas comunidades fechadas onde a Inquisição não podia chegar nem obter provas ou testemunhos tangíveis dos seus “delitos”. Centenas de milhar de hereges viviam perante os seus narizes, desde há mais de cem anos, após a “reconquista cristã”, ignorando a palavra de Cristo, fingindo aceitá-la, ano após ano. Era uma afronta, um exemplo gravíssimo e intolerável.
Será neste contexto que os delinquentes da Garduña souberam – e vieram – a tornar-se úteis, ganhando dessa forma uma grande margem de actuação, dado que as autoridades faziam vista grossa quanto aos seus actos.
Todos os membros deste grémio possuíam uma tatuagem em alguma parte do seu corpo, tatuagem essa que era uma gadanha (instrumento associado à morte) com duas gotas de sangue.  
Uma das suas máximas era “fazer do possível o impossível”. Nunca deixar testemunhas dos seus actos.
Quando da expulsão dos muçulmanos sobreviventes em Espanha (entre 1609 e 1614) e em Portugal ainda durante o século XVI, a Garduña enriqueceu ao ser mais útil do que nunca a vários tipos de clientela - além da Inquisição - para ajustes de conta. Foi-lhes possível roubar, sequestrar, violar e matar os refugiados na total impunidade, deitar o gadanho às suas propriedades pela coação e pela força, permitiu-se que indivíduos ricos se aproveitassem para intimidar, roubar ou vingar-se dos mouros expulsos… Com tudo isto, não faltaram oportunidades de negócios e de auferir chorudos favores nesses tempos.
A Garduña nasceu no contexto das fraternidades criminosas dessa época, vindo a desenvolver enorme poder, extensão e complexidade organizativa comparáveis às das grandes máfias modernas, de muitas sociedades criminosas posteriores, tendo em conta que nasceu numa época em que Nápoles e os seus territórios pertenciam à Coroa espanhola, onde veio a florescer.
A sua estrutura interna era piramidal - como em qualquer sociedade secreta – sendo que para ingresso os seus membros eram sujeitos a provas iniciáticas. Possuíam palavras, toques e sinais para se reconhecerem entre si. Esta pirâmide tinha cinco níveis. Assim: a cúpula da organização era formada por um diretório secreto constituído por altos protetores, composto de membros proeminentes da burguesía. Só estes tinham acesso ao Hermano Mayor, uma personagem de alta condição social que manejava a teia da estrutura e possuía às suas ordens vários capatazes (um por cada cidade).
Cada capataz dirigia dois tipos distintos de malfeitores: os punteadores (principalmente assassinos ou matadores) e os floreadores (quase todos ladrões de ofício).
A seguir aos punteadores e aos floreadores encontravam-se os postulantes, que ajudavam os primeiros, recolhiam as contribuições e aspiravam a alcançar a posição de punteador ou floreador.
Por último, estavam os fuelles ou aprendizes, que se subdividiam em quatro tipos: soplones, chivatos, coberteras e sirenas.
Os soplones eram mendigos ou idosos que tinham por missão principal vigiar ou entrar em casas, acobertados nas suas condições, para saber o que nelas havia e informarem o que valeria a pena roubar.
Os chivatos eram pessoas infiltradas, para recolherem informações. Os coberteras eram receptadores que vendiam mercadoria roubada e as sirenas eram as prostitutas, que constituíam valiosas fontes de informação para os delinquentes.
A Garduña operava na total impunidade. Entre os seus filiados e colaboradores contavam-se juízes, governadores, presidentes de Câmara e até directores de prisões.
Dissimulava-se como se fosse  uma ordem religiosa, arrogando-se o direito divino de roubar e assassinar. Como sociedade esotérica, aparentemente não possuía documentos escritos nem estatutos, comunicando as regras por que se regia através das iniciações e posteriores elevações de grau.
O mais assombroso, é que apesar de cometer toda a espécie de crimes era bastante religiosa. Os seus membros rezavam pelos irmãos que haviam falecido e destinavam 10% dos seus proventos às almas do Purgatório.
A traição às referidas normas traduziam-se em condenação à morte.
Desta forma, existe a lenda divulgada por gentes da malavida em geral e dos vários ritos da máfia calabresa, que as varias máfias italianas foram criadas por três irmãos, cavaleiros espanhóis da Garduña: Osso, Mastrosso e Carcagnosso, que no século XV fugiram de Toledo após vingarem com sangue, a honra ultrajada de uma irmã.
Estes cavaleiros refugiaram-se na ilha Favignana, no extremo ocidental de Sicília  onde permaneceram 29 anos, 11 meses e 29 dias. Compilaram as regras sociais e o código de conduta da Garduña, escrevendo-as e aplicando-as às organizações que criaram, identificadas geralmente como Máfia.
Quando se separaram, cada um deles levou consigo esse conjunto de normas para três lugares distintos: Osso, o mais velho dos três irmãos permaneceu na ilha e criou a Cosa Nostra, Mastrosso, atravessou o estreito de Messina e deu-as a conhecer na Calábria originando a ‘Nrangheta e Carcagnosso, o mais ambicioso dos três conseguiu alcançar Nápoles, uma das grandes cidades do poderosos reino de Aragão, promovendo a Camorra.
Curiosamente, nos inícios do século XIX, ao mesmo tempo que apareceram as modernas organizações mafiosas a Garduña desapareceu bruscamente, em pleno auge das sociedades secretas.
Embora durante séculos não existissem documentos escritos conhecidos sobre esta organização, a sobranceria e a vaidade  levaram o último Hermano Mayor, Alfonso Cortina, juntamente com apaniguados a escrever o chamado Libro Mayor onde eram relatadas as actividades históricas da Garduña.
O livro foi descoberto em 1821 em casa de Cortina, o qual foi arrestado sobre a acusação de assassinato, pelo oficial de Caçadores, Manuel de Cuendías. 
Na referida obra foram inventariados os atentados que a Fraternidade executou ao longo dos séculos, uma lista de irmãos  e também de nomes dos apoios subornados, membros dos poderes locais.
Ou porque estes últimos não queriam ver o seu nome associado à Garduña, ou porque ao ter sido feita uma
lista dos cabecilhas dessa organização, foram expostos desnecessariamente a uma captura em massa entre
1821 e 1822, a Garduña foi amplamente purgada no centro e no sul de Espanha, desconhecendo-se o que
sucedeu por via destes factos, com os seus membros em Portugal.
Em consequência deste achado, o Hermano Mayor e os seus lugares tenentes garduñistas (quinze) conhecidos foram julgados e executados na Plaza Mayor de Sevilha, em 25 de Novembro de 1822.
Não obstante, esta execução não significou o fim da referida Irmandade e dos seus métodos de poder. Aproveitando as regras e o código de conduta, foi ressuscitada em 1970 por iniciativa do bispo M. L. - forte opositor do Concílio Vaticano II -  através da F. S. S. P. X.
Este prelado foi suspenso ad divinis pelo papa em 1976, tendo visto a suspensão ser revogada em 2009, pelo papa Bento XVI.
Esta organização, embora ortodoxa, procura adaptar-se às circunstâncias das sociedades actuais, intervindo de acordo com os novos tempos. Para tanto e de forma a alcançar os seus fins,  encontra-se organizada em distritos e casas repartidas pelos cinco continentes. Tem representação em Portugal com a sua casa autónoma sediada em Espanha.

REGRAS - O Libro Mayor
1.  Bom olho, bom ouvido, boas pernas e pouca língua.
2.  Receber sobre a sua protecção as mulheres que sofram perseguições da justiça.
3.  Os chivatos não podem no seu primeiro ano de noviciado, montar “negócios” sozinhos.
4.  Os punteadores encarregam-se dos negócios de maior soma de dinheiro.
5.  Os floreadores vivem à custa do seu trabalho com um terço dos seus negócios e deixam algo para as almas do Purgatório. 
6.  Os encubridores recebem dez por cento de todas as somas.
7.  As sirenas ficam com as ofertas dos nobres.
8.  A regra máxima é: “antes mártires que sacerdotes”.