quinta-feira, 12 de março de 2009

PARÁBOLA DO PORTUGUÊS EX-FELIZ

Por Asdrúbal da Purificação O senhor Barnabé Viçoso era um português como tantos outros, de barriguinha proeminente, com falta de cabelo no alto do cocuruto e um farfalhudo bigode por baixo do narigão vermelhusco. Apresentava-se como um devorador compulsivo das letras gordas dos jornais desportivos, sem grandes preocupações intelectuais que lhe tolhessem o cérebro, fanático de um clube que se encontrava na 1ª Divisão, amigo das patuscadas ao fim-de-semana e inimigo da azia e da dor de cabeça às 2ªs feiras. Possuía um carro japonês de último modelo e um apartamento duplex nas Olaias com cinco assoalhadas. Era director de departamento numa empresa multinacional de higiene íntima feminina, auferindo um ordenado acima da média. Estava casado há uma meia dúzia de anos com uma vistosa mulher de cabelos loiros, traseiro sólido saliente e seios empinados, com quem lhe dava gosto sair à rua e provocar inveja aos amigos nos convívios sociais. Em suma: a vida corria-lhe de feição. Era um gosto vê-lo, ostentando nos lábios um permanente sorriso de quem estava bem consigo e com o mundo, sempre amável e cortês para todos quantos com ele conviviam. Mas um dia (há sempre um dia…) algo começou a nascer de mansinho, que veio quebrar aquela santa paz, aquela beatífica e seráfica forma de vida. A desgraça, o opróbrio, o ostracismo ameaçavam-no a breve prazo. Insidiosamente, as televisões, as rádios os jornais, os membros do conselho de administração e os colegas da sua empresa, o porteiro, o padeiro, a mulher-a-dias, a esposa (a santa fada do lar) e a sociedade em geral, começaram a proclamar a toda a hora as virtudes medicinais, o segredo de bem-estar na vida e em sociedade, quiçá, em caso extremo, sobreviver, que outra coisa mais singela não era que passar a vestir de cor-de-rosa desmaiado, incluindo a roupa interior (homens e mulheres), ingerir alimentos cor-de-rosa, raciocinar em cor-de-rosa e ser tementes e reverentes ao Chefe todo-poderoso e às demais autoridades do Estado que ele dominava com mão de ferro. Mais, a moda avançava tão rapidamente, que todo aquele que não aderisse a ela arriscava-se a ser desprezado, despedido do emprego, marginalizado pelos amigos e pela família, banido da sociedade e, quem sabe até, vir a tornar-se num sem abrigo. Idolatrar o chefe cegamente, incensá-lo na penumbra das latrinas, admirar-lhe as suas imaculadas camisas brancas por baixo dos fatos cinzentos impecáveis, como o de uma recatada virgem conventual, sorver e decorar avidamente os seus discursos, as suas intervenções, acompanhadas de gesticulações robóticas, botadas numa maravilhosa voz fanhosa, só possível graças à natureza, que generosamente o havia dotado de uma penca estilo broca de cavernas, era o dever de todo o cidadão. É evidente, que à semântica hermética das suas faladuras ao povo, só os acólitos mais próximos tinham acesso, o condão de as descodificar e retransmitir ao povoléu. De entre eles, fervorosos e reverentes merecem destaque o sub-chefe “boquinha-cu-de-galinha” e o contra-chefe “malhar-na-direita”, lídimos espécimes vivos invertebrados fora de água salgada. O que trazia atormentado, pois, o senhor Barnabé Viçoso era o facto de ser daltónico, e por tal facto, ter dificuldade em destrinçar a cor-de-rosa desmaiada do vermelho, ou outra cor aparentada, facto que lhe começava a complicar gravemente a vida no seio da nova sociedade que anunciava uma nova era.

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