segunda-feira, 2 de março de 2009
ESTÓRIAS EDIFICANTES
O SENHOR MINISTRO
Por P.P.
De fato de alpaca cinzento-escuro, de corte irrepreensível, assinado por um famoso estilista europeu, o senhor Ministro empurrou as largas portas de vidro do enorme edifício de linhas arrojadas e estilo indefinido, pintado de cor-de-rosa e verde alface, da autoria de um famoso arquitecto.
Acelerou célere o seu passo elástico, na direcção do elevador que mais parecia um autocarro em hora de ponta, apinhado de gente sem um esgar no rosto, vestidos de igual modo cinzentão ou azul a dar para o preto, tal como o chefe, ao mesmo tempo que ia distribuído e retribuído bons-dias corteses à esquerda e à direita, para trás e para a frente, deixando à sua passagem um rasto impregnado de um odor forte, ligeiramente adocicado, a Paco Rabane.
Enquanto o ascensor subia rápido e silenciosamente até ao piso onde se situava o seu gabinete, aproveitou, para ao tacto com a mão direita confirmar da perpendicularidade e alinhamento da sua gravata de sede Pierre Cardin de cor azul cueca, sob uma camisa Givenchy imaculadamente branca – à moda – como a dos empregados de mesa dos restaurantes, de punhos dobrados seguros com botões de cristal, ajeitando com a mão esquerda de encontro a si, a pasta de pele de crocodilo e fechos dourados, para não incomodar uma secretária que se encontrava ao seu lado, de saia e casaco cinzentos, com a lapela direita adornada por um enorme e fulgurante broche aparentando uma rosa estilizada. Sobressaíam do opulento peito arfante da senhora, imensos folhos brancos, tantos, que mais parecia uma couve flor antes de entrar na panela.
Penetrou no seu amplo gabinete climatizado, alcatifado quase até aos artelhos, de paredes revestidas por madeira exótica e amplas vidraças a partir de onde relançou o seu olhar faiscando omnipotência, por cima dos mastodontes de betão das redondezas e até ao horizonte próximo semeado por uma miríade de barracas de tábuas cobertas de chapas de lata, onde vegetavam milhares de potencias votantes, o senhor Ministro recostou-se na poltrona de coiro e debitou de rajada umas quantas cartas para um gravador portátil.
Pelo telefone interno intimou com ar autoritário para a sua secretária lhe trazer café e bolachas. Disputou durante largo tempo, afanosamente, no computador, um jogo de estratégia on-line e deu uma vista de olhos pelos títulos dos periódicos matutinos que a sua subalterna submissa, diligentemente lhe trouxe com o pedido.
Chupou dos dedos o resto do açúcar das bolachas, desfolhou enfastiado uns dossiers com matéria para despacho, que se encontravam pousados numa ponta da secretária, colocando-os na outra ponta da mesa sem mais delongas.
Entrementes, o relógio que se encontrava a decorar a mesa de reuniões fez pi-pi, pi-pi, pi-pi, lembrando-lhe que era meio-dia, hora de almoço.
Pontual e metódico, o senhor Ministro desimpediu parte da secretária de duas folhas A4 em branco e um jornal desportivo datado da véspera, colocou nela a sua mala de pele de crocodilo de onde tirou o único conteúdo desta; um molho de nabos. Sem os descascar, pôs-se tranquilamente a degluti-los incluindo a rama, até entrar na fase da ruminação.
Era graças aos nabos, a essa iguaria em abundância na sociedade em geral e no seu partido em particular, que tragava diariamente, antes até, de ser secretário-geral do seu partido, que havia ascendido ao lugar de Ministro.
OS MAREANTES
Por P.P.
Alcandorado numa alta escarpa que se precipitava sobre as profundezas do oceano, de semblante fechado e olhos semicerrados, sombreados pela aba desabada do chapéu de feltro andaluz, o Infante perscrutava o horizonte marítimo até onde a linha de água se irmanava com o azul do céu.
O rumorejar das vagas que vinham transformar-se em espuma branca, de encontro ao promontório, misturava-se com o assobio sibilino do vento suão.
Já o sol havia mudado de quadrante no relógio de pedra ali por perto, carcomido pelas intempéries, quando ao longe se começaram a divisar velas brancas de uma caravela que de ora em vez se sumia de vista na cava de uma vaga mais alterosa.
Quando a cruz de Cristo se divisou, enfim, o Infante pigarreou, expeliu de um jacto para o chão a gosma e disse com voz aflautada àqueles que o acompanhavam silenciosamente apreensivos desde há um ror de dias: - Quem porfia sempre alcança!. -Obtendo como resposta, um fundo suspiro colectivo de alívio e um acenar de cabeças em sinal de assentimento.
Decorreram ainda quase duas horas até a caravela arribar a porto seguro numa enseada a que chamavam… bem, isso também não interessa para a estória… tendo-se nesse meio tempo procedido aos preparativos de boas vindas dos argonautas.
O sol encontrava-se no ocaso.
Fundeada que foi a âncora, dois escaleres foram baixados onde os marinheiros embarcaram rumo à praia. Gritos de exclamação e de alegria misturavam-se entre os que vinham e os que estavam. A confraternização durou pela noite dentro em redor das fogueiras. Alegraram-se os corações e os corpos com as viandas e o vinho mais umas moçoilas liberais, produto da região.
Para o fim da noite, não podendo mais conter a sua impaciência o Infante interrogou o capitão da nau: - Afinal que novidades me trazeis? – Serão de tal monta desagradáveis, que por tal razão tendes estado estas horas tão ensimesmado? – Ao que o argonauta respondeu estremecendo: - Para lá do Bojador não passámos, meu senhor e se mais longe não fomos em nossa derrota, foi porque entrementes uma tempestade medonha estalou. Mar e céu desfizeram-se sobre nós e do meio da tormenta nos surgiu uma horrenda criatura, disforme no tamanho e de carão sinistro, que trovejou por cima das nossas cabeças dizendo: - Não ouseis avançar neste mar que é meu, porque se o fizerdes rogo-vos como praga que a vossa nação seja para sempre conhecida pelo «Portugal dos pequeninos».
- Esta é a razão porque estamos de volta sem termos ido mais além, meu Infante. – Disse o capitão.
Não obstante este aviso, que acabou por não ser levado a sério pela corte, os portugueses foram mais tarde e durante décadas, muito para além do Cabo Bojador, vindo Portugal a tornar-se com os tempos, «dos pequeninos».
IN ILLO TEMPORE
Por P.P.
Já a noite de manso se avizinhava, quando o cavaleiro encetou a jornada há muito programada como objectivo de crucial importância.
Tocando a montada, meteu a trote lento por um pedregoso caminho densamente arborizado que o cavalo parecia conhecer.
Súbito, chegaram ao sopé da montanha. A partir daí a viagem tornou-se mais difícil. Um escarpado carreiro serpenteava serra acima por meio de silvados.
A noite desceu e a lua subiu cheia, prateada, acompanhada pelo piar lúgubre das aves nocturnas.
As ferraduras faziam chispar faíscas dos seixos, que na andadura rolavam por baixo dos cascos da alimária, à qual, o cavaleiro dava rédea.
O luar transmitia às árvores, aos arbustos que se prendiam na capa do cavaleiro, a tudo, um ar irreal, fantasmagórico de tal ordem, que até as pedras pareciam animadas por vida própria.
Corria uma leve brisa gelada.
Passadas que foram mais de três horas de marcha, cavalo e cavaleiro encontravam-se quase no topo da escalabrada montanha, onde se avistavam as torres pontiagudas de uma fortaleza.
O piar grave de um mocho de olhos esbugalhados, empoleirado num galho de uma árvore seca à beira do caminho, fez com que o cavalo se empinasse assustado. O cavaleiro susteve-o pelas rédeas acalmando-o com palavras breves.
Retomaram a marcha e passando a ponte levadiça da fortaleza, que foi baixada lentamente, transpuseram o fosso circundante, passaram um enorme pátio iluminado pelo luar e estancaram frente ao enorme e bruto portão do casarão principal.
Luzes não se avistavam para lá das portadas fechadas nem som havia que supusesse vivalma.
O cavaleiro berrou: - Ó da casa! – Berro que se prolongou num eco pelas ameias da fortaleza.
Respondendo, o portão começou a abrir-se num vagar rangente dos seus gonzos ferrugentos, numa desgraçada chiadeira.
Segurando a candeia de luz tremeluzente por baixo de um narigão vermelhusco e verrugoso, um corcunda de idade avançada assomou pela frincha do portão e continuando a abri-lo disse: - Boa-noite senhor! Esperam-vos.
Avançando, o cavaleiro desmontou passando as rédeas do equídeo ao porteiro e, passando a entrada, encaminhou-se em direcção a uma ténue luz que se coava através de uma porta entreaberta. Empurrou-a e entrou num amplo salão. A um canto, uma enorme lareira queimava grossos troncos de árvores centenárias. Única luz ambiente. Ao meio, três homens de idade imprecisa, de longas barbas brancas, envergando longas túnicas vermelhas, circundavam, sentados em fortes cadeiras de alto espaldar, uma mesa redonda, sólida e maciça.
À entrada do cavaleiro, que ostentava longas barbas brancas e envergava uma túnica idêntica aos outros três, os mesmos levantaram-se cumprimentando-o sobriamente, com uma ligeira inclinação de cabeça, voltando a sentar-se.
Uma cadeira encontrava-se vaga. Estava-lhe reservada. Sentou-se. Após um curto silêncio, o mais velho dos cavaleiros, aquele que ostentava as mais bastas barbas, tomou a palavra dizendo: - Há séculos que te esperávamos. Finalmente que nos conseguimos reunir, em circulo, num quadrado perfeito. A partir de agora podemos tomar decisões para este terceiro milénio.
AMOR À PORTUGUESA
Por Asdrúbal da Purificação
Regressava da escola a minha casa, que ficava mesmo no coração de Alfama.
Na entrada do beco, um grupo de vizinhas rodeava a Dona Genoveva que morava no 1º andar do número onze. Esta tinha o rosto decorado por uns novos «óculos escuros». Orlavam-lhe os olhos – e não só – enormes manchas negras de sangue pisado. Encimava-lhe os lábios, um bigode à Clark Gable a que lhe eu ouvia chamar buço.
Percebi entre os murmúrios em surdina, palavras que variavam da indignação ao «coitadinha». Eis senão, quando saindo de sua casa assomou-se junto do mulherio o marido, que tinha por «nobre profissão» ser carteirista de dia e fadista à desgarrada, nas noitadas das tascas do bairro e não só. Vinha apinocado de fato preto às ricas brancas, de sapatos de verniz a condizer e peúgas brancas, gravata vermelhusca e cocuruto aplainado com brilhantina, ou gel, como agora se diz.
Uma das vizinhas mais afoita, a Dona Georgina, varina com banca na rua de S. Pedro, perguntou-lhe: - Oiça lá ó seu Raimundo, que raio é que aconteceu a sua mulher que coitadita até parece que foi escoicinhada por um burro?.
- O Raimundo, esboçando uns esgares condoídos respondeu-lhe perante o silêncio do mulherio e as fungadelas da consorte: - Sabe Ti Georgina, foi um azar do camandro o que aconteceu à minha esposa! Foi isso mesmo. Ontem, mal entrei em casa, a minha Genoveva louca de alegria de me ver – sim, que ela só tem olhos para mim – veio pelo corredor fora desde a cozinha de braços abertos para me abraçar, mostrando a cremalheira de risonha que estava. Acontece que tropeçou numa tábua solta do sobrado e zás… caiu com a cara nas minhas mãos. Foi mesmo um azar do caraças!
O VOO
Por P.P.
Num golpe de asa, inflectiu para a direita e encetou um voo picado em grande velocidade.
No percurso para o objectivo, a deslocação do ar provocava um assobio imperceptível em toda a sua estrutura. Quase no limite da aproximação do local de aterragem, «travou» a descida e curvou para a direita em voo rasante, lento, oscilando as asas graciosamente.
A área que sobrevoava era extremamente irregular; ora lisa, ora cortada por profundos canais, ora montanhosa e coberta por vastas extensões de floresta banca e negra, impenetrável.
Nisto, a enorme mancha sobre a qual voltejava, pareceu deslocar-se, aparentando assustar a nave, porque esta, mudou rapidamente de rumo, ascendendo velozmente aos céus.
No espaço, como uma estação orbital, esperava-a oportuna uma pista de aterragem feericamente iluminada como se fosse um arraial popular.
Aproveitou a escala estratégica para lavar os seus radares, o trem de aterragem e alijar carga que de repente se tinha tornado desagradável e incomodativa.
Após aquela - que entendeu - merecida pausa, levantou de novo voo, rumo à sua enigmática e insondável missão.
De novo, em breve tempo se encontrou de regresso à última área por onde havia pouco tempo antes voltejado.
Evoluiu em acrobacias, uma, duas, várias vezes por cima da mesma superfície - afinal - oscilante, quase redonda, recoberta de matagal.
Voou distanciando-se dela, na procura de um ponto de observação estratégico do seu alvo. Na procura de uma pista fixa, conseguiu divisar uma imensa clareira branca no sopé da enorme montanha coberta da tal vegetação. Lesta, dirigiu-se rapidamente para lá, conseguindo a proeza de uma aterragem quase perfeita.
Eis senão quando, o exterminador, o mata-moscas se abateu sobre ela.
A velha mosca varejeira finava-se assim, ingloriamente, depois de durante muitos meses ter infernizado a vida de centenas de milhar de pessoas envolvidas na reforma da educaçãozinha.
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