segunda-feira, 8 de junho de 2009

A CULTURA DA PAZ

Um dos principais mitos políticos que se instituiu no Ocidente moderno desde Maquiavel foi o da política como esfera da degradação, da vilania, da falsidade, na qual os fins justificam os meios, da ruptura com a ética, da sujeição material e espiritual do homem, antes que a sua libertação. As consequências de tal visão compartimentada do homem e do mundo e da política, embora as conquistas democráticas do moderno Estado laico, mostraram, contudo, nestes séculos, o seu esgotamento e efeitos perversos, quando então o critério do poder, submetido ao império da razão instrumental, é o da eficiência nem sempre revertida para a res publica e no qual ele se converte num fim em si mesmo despreocupado com a polis e o com o bem comum ou justiça. A concepção maquiavélica, cuja teoria e imaginário se solidificaram no pensamento ocidental, é, como destacou Cassirer (Cassirer,1976), uma visão orientada pela concepção de uma “profunda perversão moral da humanidade”. Ela inscreve-se e ao mesmo tempo reforça uma cultura que atinge tanto a concepção de política - como esfera da mentira, da corrupção e da violência - quanto a esfera privada, o que irá conduzir a práticas perversas as quais têm a sua conclusão lógica numa sociedade que se imagina e que se constitui como competitiva desigual e violenta. Enfim, ao longo desses séculos, construiu-se uma cultura da violência. Ora, a violência, no sentido primeiro aqui adoptado, diz respeito à coisificação do outro na relação de alteridade. Entendida universalmente como todo atentado aos direitos fundamentais das pessoas; é também concebida como o acto de privar o homem de sua palavra, acto extremo empreendido quando não há possibilidade da palavra, do entendimento: “fazer violência é sempre fazer calar”(1). Como dito por Simone Weil(2), violento é “aquele que faz de quem lhe é submetido uma coisa”. Sob essa perspectiva, em nossa tentativa de construir um conceito primeiro de violência, veremos que as formas através das quais ela se manifesta vão da dimensão simbólica presente na calculada espectacularização da política e nas estreitas relações entre sacrifício e violência(3) até a violência física; vão da humilhação e imputação de sofrimento psíquico até a morte, da requintada indiferença em relação ao Outro que sofre até a chamada mortificação do eu(4. Dessa, ainda, concepção não podem ser afastadas também tanto a violência institucional quanto aquelas exercidas no âmbito dos foucaultianos micropoderes(5). Qualquer que seja a forma através da qual se manifeste, a violência quase sempre recorre ao simbólico para se expressar (e por sua vez pode ser por ele engendrada). Isso é perceptível tanto na exuberância simbólica de uma sociedade espectacularizada, quanto nas subtis, mas não menos presentes, manifestações dos complexos simbólicos presentes nas relações Burocráticas como descritas literariamente no universo kafkiano(6). Intimamente ligada à reificação das relações sociais, qualquer que seja a sua manifestação, a violência é sempre uma interdição à palavra do Outro e, ao mesmo tempo, a manifestação do não-olhar para o Outro nas relações sociais e políticas (Mendonça, 1997 e 1998). Aliás, é através dessa última perspectiva que Adorno e Horkheimer abordam a questão da violência no clássico Elementos do Anti-Semitismo (Adorno & Horkheimer, 1991)(7), quando então a questão da alteridade será apropriada através da denúncia do ofuscamento das relações sociais como elemento patológico do anti-semitismo e das relações na sociedade capitalista, caracterizado pelo olhar que extingue o sujeito, que não o vê como dotado de humanidade(8) . Posteriormente, Adorno tratará do tema da verdade associada a uma sociedade livre porque desalienada. A mentira irá vincular-se à barbárie, situação em que a sociedade se submete ao império da razão instrumental e na qual o Outro desaparece transformado em meio(9). Ofuscamento, irreflexão, dizem respeito à não-percepção da humanidade presente em cada qual e elidida na relação algoz-vítima. Chegamos aqui ao ponto central dessas reflexões: o não-olhar denuncia e alimenta uma sociedade doentia na qual os sujeitos perdem a perspectiva do Outro e de si-mesmos. A realização da humanidade dar-se-ia então “só libertando-se o pensamento da sua fixação na dominação e eliminando-se a violência “(Cohn, 1998). Neste sentido, em nossa interpretação a mentira torna-se ela também em uma manifestação da violência ou, para usar a expressão de Adorno, torna-se a “imoralidade no outro” (Horkheimer & Adorno, 1985, 178). Sob outra perspectiva o assunto é abordado por Hannah Arendt que marcará uma ruptura no padrão weberiano de concepção de poder como visceralmente associado à violência. Para ela, antes pelo contrário, o poder estará ligado a um padrão consensual de acção solidária e não instrumental (10) no qual a verdade é de importância fundamental: “a persuasão e a violência, dirá, podem destruir a verdade, não substituí-la”(11). A questão da verdade torna-se, desta maneira, crucial para o entendimento do poder. E aqui retomamos a pergunta formulada por Arendt: será a política incompatível com a verdade? O problema, como ela identifica, já está no mito platónico da caverna: o homem que vê a luz e vem contar a verdade é desprezado e sofre ameaças. Ora, embora sua noção se prenda à verdade factual, Hannah Arendt também expõe os riscos permanentes para esta diante do poder que manipula e falsifica. No caso dos negócios públicos a “mentira organizada”, como chamaria, é uma arma contra a verdade (12). A opinião e a não verdade serão o requisito do poder. Da primeira surge a retórica com a qual as massas são iludidas e que não se limita ao verbal , mas diz respeito ao visual, ao estético, etc.. A retórica das imagens passa a ser a retórica do ilusionismo. Dessa ilusão fazem parte tanto os iludidos quanto os enganadores. Expressão dessa falsidade encontra-se no próprio carácter efémero das imagens o que seria “um indício expressivo do carácter mentiroso das afirmações públicas concernentes ao mundo dos factos”. Deste modo, para Arendt, a violência não é o meio específico da política, aliás ela é anti-política, no máximo um fenómeno marginal à política e não sua essência. O poder repousa sobre a reunião de homens iguais que partilham sua liberdade – esta sim, o “conteúdo e sentido original da própria coisa política”(Arendt, 1998). Apenas quando se dissocia dessa fonte original é que o poder torna-se em violência e é especialmente entre os privados desse diálogo, isolados e solitários (deracinés), sem participação na esfera pública que reside o germe das acções violentas (13) e das resoluções totalitárias. No caminho do predomínio do cárcere de ferro da razão instrumentalavançou também a construção de uma cultura da violência, entendida como valores e mentalidades que se constroem sobre a relação dialógica não estabelecida, o encontro não realizado, o face a face interditado O desafio, após séculos de domínio desses valores é subvertê-lo e construir uma cultura de paz. Ora, como indica o termo cultura na expressão cultura de paz envolve a mudança de mentalidades e a construção de valores envolvendo a não-violência, a responsabilidade ética, a compaixão, a solidariedade, a paz entre os seres viventes, o desapego, o respeito à vida em todas as suas manifestações, a honestidade, a construção de uma fé que dialoga antes que exclui, a dignidade e, finalmente, o respeito ao espaço público e à cidadania. Logo, cultura de paz constrói-se através de uma educação dos envolvidos no processo. Mesmo quando ela tangencia a luta política, luta por direitos ou pela criação de mecanismos institucionais ela passa necessária e precedentemente pela educação voltada para a criação dos valores acima. Assim o foi para Gandhi e Vinoba na Índia, por exemplo. A prioridade, antes que atingir o alvo da libertação da Índia para o primeiro ou da reforma agrária para o segundo, era a educação e a transformação dos adversários e da população. Logo construir uma cultura de paz implica em focalizar, não o conflito, como é típico na mentalidade de luta, mas as soluções pró-activas na criação de novos valores focados no diálogo que irão ter reflexos na vida privada dos envolvidos assim como no espaço público. É aí que algumas matrizes do pensamento ético do século XX se mostram importantes porque contêm os germes de uma visão acerca dos caminhos para uma cultura de paz e do seu conteúdo ético. As fontes dessa percepção encontram-se presentes em pensadores como Franz Rosenzweig, Martin Buber, Emmanuel Mounier, Paul Ricoeur e Emmanuel Levinas . Para esses filósofos, congregados em torno da “filosofia do encontro” a ética é irredutível ao social e ao político, ao contrário, ela os precede(…). O eixo comum entre eles será o deslocamento ético em relação ao Outro e a retomada em seu pensamento social e político de questões fundamentais como Justiça, Solidariedade, Verdade e Não-Violência(…). 1 Interessante é a posição de Paul Ricoeur, inspirado por Eric Weill abordará a violência como o oposto da linguagem e do discurso coerente (não mentiroso). (Ricoeur, 1991) 2 Apud Muller, 1991. 3 Ver acerca destas últimas Girard, 1990. 4 Vide acerca disso o clássico trabalho de Goffmann, 1974 5 Vide Foucault, 1979 6 Vide acerca disso Mendonça, 1997. 7 Tema posteriormente aprofundado em Adorno, 1964. 8 Aliás não é essa também a abordagem no campo literário feita por Primo Levi em “Isto é um Homem”, de Eli Wiesel em” A Noite “e mais recentemente em José Saramago em “Ensaio sobre a Cegueira” ? 9 Vide Mendonça, 1998:.124. 10 Vide Rouanet. S.Paulo, Introdução. In: Habermas, 1990. 11 Arendt, 1988:.317. 12 Lembremos que a mentira é ela também uma forma de violência que subverte a verdadeira relação com o Outro, na medida que impede a palavra oriunda do livre pensar diante da realidade. Vide também acerca disso Ricoeur, 1991. 13 Vide Arendt,1978. Note-se que a posição de Arendt em relação ao desarreigado aparentemente mostra-se diferente da de Levinas. Para este é o judeu sem raízes que porta a mensagem de acolhimento e não aquele preso à terra como proposto na filosofia heideggeriana. Mas, tanto nos desarreigados de Arendt quanto nos presos ao solo de Levinas (Levinas, 1976) o elemento corruptor e passível de instaurar a violência é a ausência de relações comunitárias reais, isso porque o “deraciné levinasiano”, a exemplo do judeu que vaga pelo mundo, encontra-se em relações comunitárias com o próximo, ao contrário do solitário de Arendt. Vide Arendt, 1978:589. Vale também consultar Bucks, 1997. Kátia Mendonça, Doutora em Ciência Política pela USP, Universidade de S. Paulo

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