Por Pedro
Manuel Pereira
Foi
num fim de tarde de um sábado de 1975. No seio daquela «República» constituída
pelo território que eram os ateliês na Amadora, dos pintores Artur Bual - meu
saudoso tio - e Moita Macedo - meu amigo do peito – este, também poeta. Espaços
ligados por uma porta improvisada, derrubada que havia sido parte da parede,
onde por ela circulavam os vários amigos. Uns chegavam, outros estavam e
outros... Partiam. Como porta de comunicação entre os dois ateliês, foi
colocada uma célebre tela de Mestre Bual retratando o escritor Aquilino
Ribeiro, que, com o tempo se tornou assim a modos que uma das suas imagens de
marca.
O
Miguel da Franca, excelente desenhador, cirandava entre quadros dissertando
sobre qualquer coisa.
O poeta e pintor Hugo
Beja, aparentemente angustiado por haver sido despedido pela sua última paixão,
caminhava agitado, absorto, como um cão abandonado, de um lado para o outro.
O Bual, entre largas
pinceladas de azul e vermelho, num aparente conflito com a tela, acendia mais
um cigarro sem filtro, aparentemente indiferente ao que se passava em seu
redor.
O Moita Macedo
declamava-nos um dos seus poemas. Em pano de fundo, coesionando essa enorme
tela onde todos cabíamos, ouvíamos a 5ª Sinfonia de Beethoven, debitada de um
disco de vinil de 33 rotações do velho gira-discos empoeirado.
O Moita Macedo gritou-nos:
- Estão a ouvir-me? Alguém
desligou a música. Calámo-nos como garotos apanhados em falta, olhando para ele
de esguelha. O Hugo Beja interrompeu o breve silêncio que se fez, respondendo
com ar teatral:
- Tem calma irmão! A malta
está com ar distraído mas temos estado a ouvir-te com atenção, acrescentando:
- Afinal quando é que
vamos jantar?
Jantámos não muito longe
dos ateliês, numa tasca uma excelente comida alentejana, após o que regressámos
às caves, onde nos aguardavam pacientemente sentados nos degraus exteriores, de
mármore gelada e suja, às escuras – que as lâmpadas estavam fundidas – cinco
indivíduos que eu não conhecia. Entrámos e foram-me apresentados. Para minha
surpresa – não muita – era um grupo de jovens vagamente intelectuais que estavam
a organizar um partido político. Ainda não tinham conseguido arranjar
instalações. O Macedo e o Bual, generosos e altruístas como eram, cediam-lhes
os seus espaços para se reunirem uma vez por semana. Aquela era a terceira ou
quarta vez. Nessa altura, em consequência da Revolução de Abril de 1974
existiam dezenas de partidos políticos em Portugal continental e ilhas.
O líder era um jovem
pálido, magro, encurvado, de lábios azulados por via de uma doença mázinha que
o minava. Os que o acompanhavam, esses, não tinham aspecto muito mais saudável,
diga-se em abono da verdade.
Perguntei a um deles se os
militantes se resumiam aos presentes. Respondeu-me que eram mais umas dezenas,
mas como era fim-de-semana, estavam ocupados com cenas familiares, namoradas e
tal...
Segundo me confidenciou o
Moita Macedo, tinha-os apadrinhado porque eram todos «bons rapazes, idealistas,
a darem para a esquerda, vagamente socialistas com laivos marxistas».
O Bual perguntou-lhes:
- Querem beber alguma
coisa? - O chefe do grupo respondeu por todos:
- Não, obrigado.
- E se acendêssemos umas
velas? Sempre dá uma certa aura... Um ar de mistério! - Sugeriu o Moita Macedo.
- Isso é uma boa ideia.
Respondeu o líder partidário.
- E nós? – Perguntei –
qual é o nosso papel nesta reunião?
- É pá... Estamos aqui em
redondo e isto é uma malta porreira... – Interveio o Bual.
- Pois... Nós não temos
nada a ver com o partido mas estamos aqui em sã camaradagem... - Acrescentou o
Moita Macedo.
Acenderam-se as velas,
tornou a ouvir-se a 5ª Sinfonia e apagaram-se as lâmpadas.
O Bual voltou a pintar, já
intuitivamente e o Moita pintava também de olhos em cima da tela. Eu, o Hugo e
o Miguel da Franca viemos para a rua para o fresco discutir não me recordo o
quê.
A reunião não durou uma
hora. Depois, no carro do Miguel da Franca fomos com ele, o Moita, o Hugo, o
Bual e eu até Lisboa, onde nessa noite havia um comício a pretexto de qualquer
coisa e o Moita Macedo ia intervir como orador na sua qualidade de dirigente
sindical.
Quando lá chegámos já uma
multidão se espraiava a perder de vista entre o Rossio e as Portas de Stº
Antão, onde das varandas do Palácio da Independência um indivíduo berrava
palavras de ordem de punho erguido cerrado, aparentemente furibundo com ele
mesmo, os patrões e o mundo.
Furando por entre a
turbamulta, com o Moita a capitanear - ele que era um homem forte, maciço, com
pera, bigode e cabelo grisalhos desgrenhados - conseguimos entrar no palácio e
subir os lances da escadaria até ao 1º andar.
As massas, essas, não
estavam muito entusiasmadas, até que o Moita Macedo assomou à varanda e com voz
tonitruante gritou para a multidão através do microfone:
- Camaradas! Escrevi umas
linhas para vos fazer um discurso, mas como não sei onde meti os papéis (e
dizendo isto apalpava os bolsos em vão).
- Bem… Sendo assim, vou
declamar-vos um poema de minha autoria. Este poema é para todos os que amaram
sem nunca terem sido amados.
Declamou um poema de cor,
vibrante. Num momento fiquei estupefacto (ficámos), no momento seguinte a
multidão batia palmas e gritava em uníssono e em delírio, empolgada:
- Queremos mais!
E ouvimos mais um... E
outro... E outro poema declamado com garra, com alma, com amor, como alguma vez
naquele Largo se tinha escutado.
Nunca imaginei antes, ser
algum dia possível ver e ouvir alguém galvanizar uma multidão com poemas de
amor. Pois foi isso que eu ouvi, que vi, que vivi, que me emocionou até as
lágrimas me marejaram os olhos e que gravei fundo na minha memória.
Estávamos
em Maio. Pouco mais de um ano passado da Revolução. Milhares ou talvez alguns
milhões de portugueses viviam (vivíamos) ainda a Festa do Sonho transformada em
Esperança de que em breve Portugal se tornasse num país mais justo, fraterno e
solidário, onde fosse possível viver em LIBERDADE, numa verdadeira DEMOCRACIA em
que todos nós, cidadãos, pudéssemos participar todos os dias como atores dos
nossos destinos.
Olá, uma amiga leu e gostou e enviou-me o link desta sua publicação que retrata uma das vertentes artísticas do meu pai, que mais admiro .Obrigada
ResponderEliminarMaria do Rosário Moita de Macedo