terça-feira, 31 de março de 2009

A CRISE – Que perspectivas para a ultrapassarmos?

As causas da crise actual que está a afectar todo o Mundo, de Oriente a Ocidente, resultaram, em larga medida, da especulação e da ganância de gestores que, sabendo que receberiam prémios chorudos (direi mesmo obscenos) criaram esquemas muito complexos para remunerar os depósitos efectuados nos Bancos ou aplicados em fundos de investimento que, por sua vez, foram causa de duas grandes bolhas nos Estados Unidos: a imobiliária e a financeira. (1) Desde há um século e meio que reputados economistas vêm estudando os ciclos económicos, conceito que se pode definir como “alternância irregular entre recessões (2) e expansões. Isto é, as crises são cíclicas e cada uma tem especificidades próprias, porque as respectivas causas variam, de época para época e de região para região. As soluções encontradas num dado momento para uma situação específica não se mostram eficazes noutros países e noutras épocas. Quando os economistas descobrem o remédio para a saída da crise instalada, ou para colmatar os seus efeitos – após aplicação sucessiva das ferramentas possíveis (3) – já esta causou imensos estragos. A grande depressão dos finais dos anos vinte do século passado, só acabou após a II Guerra Mundial, tendo então sido aplicadas as políticas propostas por Keynes, que, em traços gerais, se definem como a necessidade de os governos enveredarem pelo investimento público como forma de gerar emprego e, em consequência, estimular o aumento da procura e do consumo. Os economistas da direita à esquerda sustentam que nos anos trinta do século passado verificou-se um colapso da procura efectiva e que, nos Estados Unidos, a Reserva Federal deveria ter enfrentado a crise com a injecção de liquidez na economia. Na realidade essa é uma das medidas preconizadas para combater as crises económicas, facilitando-se a concessão de empréstimos por parte dos Bancos, embora haja outras (4). Aliás, a crise a que agora estamos a assistir já teria sido resolvida se essa fosse a solução ! Pese embora que essa medida possa conduzir ao pleno emprego, em contrapartida, gera inflação e quando tal acontece só se pode controlar através de um período de desemprego alargado, provocando, por exemplo, o aumento súbito dos preços de alguns bens, de que cabe destacar o Petróleo, face à enorme influência que desempenha perante os preços de outros bens. Nos anos setenta houve duas grandes crises energéticas (1973 e 1979), a seguir assistimos ao advento da tecnologia, com a supressão da força de trabalho em muitos sectores, ao surgimento da globalização (5), à deslocalização de fábricas, à extrema mobilidade do capital, à supressão de medidas proteccionistas, designadamente a descida de barreiras aduaneiras, à melhoria das telecomunicações, ao advento do transporte aéreo a baixo custo e a recessões em vários países, que foram sendo ultrapassadas de acordo com soluções encontradas para cada caso. (6) À semelhança do que aconteceu em 1929/1933, quando o pânico se instala, ger-se a desconfiança e a contracção do consumo. Portanto havendo produção em excesso, não escoada, surge o drama do desemprego, porque deixando de haver encomendas, a produção tem de parar e as fábricas vêem-se obrigadas a encerrar. Ao mesmo tempo, se se registar uma corrida aos Bancos por parte dos depositantes para levantarem os seus depósitos e aqueles não dispuserem de activos suficientes para conceder os créditos de que os empresário/empreendedores necessitam para fazer novos investimentos, a economia forçosamente estagna. Acabamos por estar perante um círculo vicioso de colapso financeiro e económico. Segundo Paul Krugman a quebra do valor dos activos pode levar bancos antes sólidos à falência. Recessão económica, elevadas taxas de juro e desvalorização da taxa de câmbio podem causar a falência de empresas sólidas. Na pior das hipóteses, as perturbações económicas podem provocar instabilidade política. No séc. XX coexistiram dois sistemas económicos: o capitalismo e o “dito” socialismo, que começou a decair em 1989, com o início da queda do regime soviético, tendo colapsado de vez em 1991. A própria China com Deng Xiaoping, em 1978, abandonou o pensamento marxista e foi-se lançando paulatinamente na via do capitalismo. Na última década do séc. XX o sistema capitalista ficou com o campo livre para se expandir ainda mais, sem qualquer espécie de obstáculos e os governantes de muitos países incentivam o compadrio, a corrupção e as economias paralelas, que funcionam sem os controlos a que os Bancos e as Instituições financeiras estão normalmente sujeitos. Esses esquemas paralelos (o chamado sistema bancário-sombra, que criou e gere fundos de investimento que funcionam em pirâmide) atingem dimensões tais que escapam a quem tem o poder de controlar os mercados. Em conclusão, a actual crise teve como causas conhecidas todas as que se verificaram entre 1929 e 2008, com particular incidência na América Latina e no Sudeste Asiático, e a solução para a ultrapassar ainda não foi encontrada, porque as todas as medidas que estão a ser tomadas nos vários países, em conjugação de esforços, ainda não se mostraram eficazes para produzir efeitos e iniciar a recuperação que todos almejamos. NOTAS: (1) “Subprime”: Foram concedidos empréstimos para compra de imóveis sem se apurar quem a eles recorreu poderia suportar os encargos inerentes, no pressuposto de que sendo normal a valorização dos imóveis – cada vez mais inflacionados - caso se verificasse a falta de pagamento, o imóvel poderia ser vendido por um preço superior e, portanto, o empréstimo concedido seria reembolsado na totalidade. O problema surgiu quando os empréstimos deixaram de ser pagos e os preços dos imóveis baixaram consideravelmente, por excesso de oferta. “Mercado de futuros”: Designação dada aos fundos de investimento de alta rendibilidade, mas também de alto risco. Quando os “investidores” desses fundos quiseram receber o capital investido, não havia liquidez suficiente para lhes pagar, porque os preços dos títulos que os compunham baixaram drasticamente. (2) Excesso de oferta em relação à procura ( 3) As várias ferramentas utilizadas e os seus efeitos: - - Quando a moeda desvaloriza (por alteração das taxas de câmbio) as exportações tornam-se mais competitivas e podem crescer; - Quando as taxas de juro diminuem é natural que cresça o investimento, porque não compensa a quem detém capital deixá-lo em depósito nos Bancos, já que a remuneração é baixa; - Quando se injecta liquidez na economia através dos bancos (aumentando o acesso ao crédito) aumenta o consumo e a inflação; - Se se quiser controlar a inflação, para que a economia abrande tomam-se medidas que vão causar desemprego, que consistem em subir as taxas de juro, diminuir os gastos públicos e aumentar os impostos (Soluções estas impostas pelo FMI ao Brasil, em 1998); - A captação de capital por parte dos Bancos pode ser feita com a oferta aos depositantes de taxas de juro aliciantes (Veja-se o caso do BPN, em Portugal); - Os Governos, por sua vez, recorrem à emissão de obrigações, quando precisam de captar fundos para investimentos públicos. (4) A injecção de liquidez nos Bancos é uma das ferramentas utilizadas em certas situações, mas não é a única. Cito, nomeadamente, o aumento ou redução das taxas de juro, o investimento público segundo a posição sustentada por Keynes, a desvalorização da moeda, aumento ou redução de impostos, aumento das exportações, controlo da inflação. (5) Transferência de tecnologia e de capital de países com salários altos para países com salários baixos e o crescimento resultante das exportações trabalho-intensivas do Terceiro Mundo. (6) Exs: América Latina, destacando-se o México e a Argentina nos anos 80, em que as recuperações só foram possíveis com o apoio dos Estados Unidos, que injectaram 50 e de 12 mil milhões de dólares, respectivamente. Nos anos 90 a crise surgiu nos países asiáticos, em especial no Japão, Malásia, Indonésia, Coreia e Tailândia. O Japão enveredou por programas que permitiram a criação directa de emprego e impulsionaram a economia em geral, como a construção de estradas e pontes; mais tarde, quando o PIB começou a crescer, o desemprego diminuiu e a deflação baixou, a principal aposta para a saída da crise foi o aumento das exportações de componentes fabricados, essencialmente para a China e Estados Unidos. FONTES CONSULTADAS: - Rudolf Hilferding – “O Capital Financeiro” (trad. Espanhola) - Caludio Napoleoni – “A Teoria Económica no séc. XX” - Paul Krugman (prémio Nobel da Economia em 2008), “O Regresso da Economia da Depressão e a Crise Actual” A.M.B.S.

ESTÁ NA HORA

Foto: A.M.

Jantar da Tertúlia Plural

Mais uma vez os elementos desta Tertúlia se juntaram na última sexta-feira do mês, como é useiro e acordado. Já lá vão três anos e o entusiasmo continua cada vez mais fertilizado num ritual de amizade e de cumplicidade. A porta esteve sempre aberta ao amigo do amigo que jantar após jantar foi chegando e descobrindo que ali é mais um, igual a outros tantos, sem constrangimentos, sem credos, sem prisões e sem servilismos partidários. Ali, fala-se a voz da liberdade, da cidadania, da justiça convicta e partilhada na/ pela pessoa humana. E foi assim que aconteceu nesta sexta-feira, o vigésimo sétimo dia do mês de Março deste prodigioso ano de todas as crises. E o tema lançado para discussão eivava pela consentaneidade do momento: A Economia e os sortilégios imprevisíveis. A dinâmica da palavra imperou e a todos envolveu. E a vontade e saudade do próximo encontro ficaram latentes na despedida. Até lá, em ABRIL! MJVS

quarta-feira, 25 de março de 2009

As aporias da linguagem

«Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. (…) São a vida e quase toda a vida – a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. (…) Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.» Raul Brandão A Chanceler da Alemanha ao dirigir-se ao seu país através dos media por causa do terrífico massacre perpetrado por Tim Kretschmer, o jovem de 17 anos que invadiu a Escola Albertville, em Winnenden (Alemanha) assassinando quinze pessoas, declarou que tinha dificuldade em encontrar as palavras exactas para tão hediondo acontecimento. Entretanto, a revista "Der Spiegel" informa no seu último número de que na noite anterior ao massacre, o jovem tinha realizado jogos violentos no computador e que há meses participava na internet em fóruns sobre massacres escolares. Na Aústria, um terrífico crime foi Primeira Página durante algumas semanas. Um pai encurralara uma filha e durante três décadas manteve-a em cativeiro, sujeitando-a aos mais perversos e inconfessos actos entroncados num continuado incesto. Em Angola, morreram esmagadas por uma imensa multidão duas jovens que apenas queriam ver o Papa. Em Portugal, num curto período de tempo, várias crianças foram vítimas de acidentes domésticos e uma faleceu sozinha no interior de um automóvel. Duas mil e duzentas pessoas perderam diariamente o seu posto de trabalho, contribuindo para que a pobreza cresça encoberta ou declaradamente e a fome alastre, qual peste negra dos tempos modernos. E assim se esgotam os caminhos da linguagem perante a crueza das realidades emergentes do mundo actual. « Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo» escreveu Wittgenstein no século XX. A verbalização é uma capacidade inerente à pessoa humana, à sua relação com o mundo e respectiva materialização, mas eis que as palavras se quedam novamente em aporia, num silêncio dorido de espanto. A força elocutória do Homem reside sobretudo na motivação cognitiva e referencial que tem do mundo para construir novos horizontes onde se possa projectar. Ele não usa a linguagem apenas para falar da realidade, ele usa-a também para a transformar e agir sobre ela e, por isso, é preciso criar e fazer ressurgir novas fronteiras que aprisionem este estertor labiríntico em que se enreda a capacidade discursiva do Homem. Que não se tenha de prolongar este tempo de aporias para que não se revalide com apropriação e sentido as célebres afirmações de Jean Paul Sartre: «Ces mots durs et noirs, je n’en ai connu le sens que dix ou quinze ans plus tard et, même aujourd’hui, ils gardent leur opacité : c’est l’humus de ma mémoire. » MJVS

segunda-feira, 23 de março de 2009

A LER COM URGÊNCIA

O leitor anda desorientado sem compreender o que se passa em seu redor? Sem vislumbrar que objectivos ou estratégias se encontram na penumbra desse mau estar? Nunca antes se sentiu assim? - Pois se quiser compreender o enquadramento do «filme» em que vive e o seu desfecho, nada melhor que ler o conto, Estábulos de Áugias, numa antologia de contos de Agatha Cristhie intitulada: Os 12 Trabalhos de Hércules, da Editora Livros do Brasil, Lx., 2001. A estratégia actual que o traz preocupado com o futuro breve, foi , provavelmente, baseada neste conto. A.M.

Litania da Sombra

Não perguntem nada: nós estamos dentro do aro de frio, no frio do muro, tão longe, tão longe da feira do Tempo! Não perguntem nada. Nós estamos mudos. Puseram açaimes nas ventas do vento, ergueram açudes nas águas do mar… Não perguntem nada: nós estamos dentro, ou fora de tudo. Não perguntem nada. Tumulto na estrada? O bicho na concha. Miséria na casa? O farol na montra. Não perguntem nada, não perguntem nada: há sempre de gládios a ríspida sombra. Não perguntem nada: as razões são longas. Não perguntem nada: as razões são tristes. Não perguntem nada: nós estamos contra. E talvez perdidos. E talvez perdidos. David Mourão Ferreira, in Memoriam Memoriae, 1962

Pedro Manuel Pereira publica novo livro

Sob a chancela da Editora SeteCaminhos foi lançado na passada sexta-feira , 20 de Março, na Livraria Bertrand Vasco da Gama, em Lisboa o livro CASA 4 – A Loja dos Grão-Mestres, Sympathia e União, 1859-2009 de Pedro Manuel Pereira e António Neves Pereira. À sessão acorreram, além de inúmeras personalidades do meio literário, muitos amigos e admiradores. A apresentação ficou a cargo do Professor Doutor António Ventura, docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Director da Biblioteca Maçónica do Grande Oriente Lusitano. Este livro retrata a laboração ininterrupta de uma Loja Maçónica, a Casa 4, ao longo dos últimos três séculos. Ao retratar a história desta Loja, os autores reerguem também muitos dos momentos decisivos do passado histórico de Portugal. Sendo o património existente muito volumoso e rico, cremos que um novo livro estará brevemente no prelo para dar seguimento à narração do prolífico labor destes insignes obreiros. MJVS

Mário Crespo - Entrevista o Prof. Medina Carreira - SIC

Se não teve oportunidade de ver e ouvir, aproveite agora. Veja o vídeo em: http://www.sic.pt/online/video/informacao/mariocrespoentrevista/2009/3/mario-crespo-entrevista.htm

domingo, 22 de março de 2009

Ladislau Dowbor e a crise: "E quem disse que há um fundo do poço?"

O economista acha que o sistema financeiro mundial está inquinado. A solução é "liberalizá-lo" para livrá-lo dos "atravessadores e dos especuladores" e para que o dinheiro volte a servir a economia real. Jorge Nascimento Rodrigues Quarta-feira, 18 de Mar de 2009 In Exame Expresso Pode não haver um fundo do poço se nos limitarmos a querer curar a crise dentro das suas paredes, ficando prisioneiros do sistema financeiro mundial actual. Temos de olhar para fora do poço, parafraseando a célebre recomendação de "olhar para fora da caixa". "Ninguém perderia nada se se fechassem os grandes sistemas de especulação", diz Ladislau Dowbor, de 68 anos, um francês de origem que trabalha no Brasil nas áreas do desenvolvimento local e regional sustentável e que é um perito internacional em planeamento. Pelo seu activismo e pensamento a contracorrente, Ladislau é hoje considerado uma espécie de "três em um", na apresentação que o economista Mário Murteira faz deste professor da Pontifica Universidade Católica de São Paulo: mistura uma posição independente como a do falecido economista brasileiro Celso Furtado, com o activismo contra a exclusão social típica do Nobel de Economia Amartya Sen e com a inovação social característica do Nobel da Paz Muhammad Yunus. Ladislau formou-se em Economia Politica na Universidade suíça de Lausanne nos anos 1960 e doutorou-se na Escola Central de Planeamento e Estatística de Varsóvia nos anos 1970. Leccionou finanças públicas na Universidade de Coimbra entre 1975 e 1977. Em entrevista ao Expresso reclama que é necessária uma "governança planetária", que vá para além do G20 e dos equilíbrios entre os BRIC e o G7. P: Um director do GIC, um fundo soberano de Singapura, revelou, recentemente, num slide para um público restrito que esperava que o montante a abater às contas no sector financeiro possa chegar aos 3,8 biliões de dólares (2900 mil milhões de euros) em 2013, e que, por ora, o que foi contabilizado soma apenas 30%. Como repete o financeiro Soros, o pior ainda está para vir? R: A moeda representa direitos sobre produtos comerciais. São papéis, e mais recentemente puros sinais magnéticos nos computadores. É fácil de produzir. Quanto aos bens da economia real, estes têm de ser, de facto, produzidos com esforço, matérias-primas, factores de produção. O desequilíbrio é fácil, por isso, de se gerar. A Lehman Brothers tinha emitido "direitos", sob forma de créditos, equivalentes a 31 vezes o que dispunha em caixa (as poupanças reais de quem produziu bens e serviços, cuja contrapartida gerou a possibilidade de poupar). Ao emitir no vazio, o banco americano cobrava assim juros e tarifas sobre um dinheiro que não tinha, e que não correspondia a nenhum aumento de produto disponível. P: A quanto monta essa "alavancagem" feita nas últimas décadas? R: O processo é simples. Multiplique-se esse processo [do Lehman Brothers] centenas de vezes nas mais variadas instituições, e chegamos aos tais 680 biliões de dólares (520.000 mil milhões de euros) emitidos no mercado de derivados, sob várias formas. Ora, o PIB mundial é da ordem, apenas, de 60 biliões. P: Ou seja, o edifício dos famosos "veículos financeiros" inovadores é dez vezes mais que a economia real mundial. Como vamos sair de um mar de "lixo" tão avassalador? R: Você tem diante de si um mundo de gente segurando papéis que julgavam valer algo. Vai ter de ser restabelecido o equilíbrio entre os bens e serviços realmente existentes, e o volume de "vales" emitidos. Ninguém sabe ao certo quantos "vales" foram emitidos ao todo, qual o volume de papéis "podres" no planeta, e portanto qual o tamanho do ajustamento em baixa necessário. Na minha convicção, não apenas o pior está por vir, mas não há necessariamente um "fundo do poço". P: Mas se não há um fundo do poço, como vamos sair dele? R: Quem garante que depois da descida há uma subida? Se houver mudanças estruturais, sim. Mas através dos mecanismos oligopolizados de finanças internacionais existentes, e que chamamos por alguma confusão mental de "mercados", seguramente que não. Recorde-se que a crise de 1929 encontrou paliativos, não soluções. Acabou com a tragédia planetária da IIª Guerra Mundial. Quem disse que se a economia está a descer, necessariamente daqui a pouco vai subir? Ela não é como o mar - são estruturas cristalizadas de interesses que nos manterão na crise enquanto não houver reformulações mais profundas. P: O voluntarismo do Tesouro e da Reserva Federal americanas, ao não deixar cair os demasiado grandes para falir, na realidade é para capitalizar os bancos zombies (como já chamam a alguns dos grandes bancos na América) e deitar dinheiro para os seus accionistas principais, ou é mesmo para injectar liquidez na economia real, como se diz? R: Todo o sistema especulativo na fase de expansão estava apoiado num aumento real da produção, ancorado por sua vez nos grandes avanços de produtividade que as novas tecnologias permitiram. A repartição da riqueza produzida deu-se numa aliança de fato entre os CEO das corporações (tipicamente com salários de dezenas de milhões de dólares) e os grandes accionistas e investidores institucionais (os grandes fundos de especulação). Não se trata de uma conspiração: trata-se de uma festa bastante alegre ("festa com chapéu dos outros", dizemos no Brasil), onde quem tinha assento à mesa achava óptimo colaborar. P: Mas para que servem, então, os reguladores? R: Quanto aos organismos reguladores, Joseph Stiglitz já mostrou como são as mesmas pessoas que ora estão no Tesouro, ora no FMI, ora na Wall Street, ora na Reserva Federal. Em vez de prestarem serviços financeiros, essencialmente se serviam, e ninguém gosta de estragar festas, sobretudo quando participa. P: Uma consultora americana, Catherine Austin Fitts, denunciou na América que o que se assistiu desde os anos 1990 com a revogação de peças centrais da regulação e com a gestão das bolhas por Alan Greenspan foi um verdadeiro "golpe de estado financeiro". Uma "criatura" na sombra surgiu de facto dessa vaga de "inovações financeiras"? R: Como mencionei acima, não se precisa de teoria conspiratória, quando todos estão de acordo em se servir sem pensar muito no futuro ou na sociedade. As instituições de avaliação de risco eram (e são) pagas por quem avaliavam, ainda que um AAA custasse caro - até a Lehman tinha. As empresas de auditoria, com todos os seus códigos de ética, eram consultoras de quem controlavam, uma mão lavando a outra, como no caso da Artur Andersen. Os governos que deveriam regular o sistema financeiro, são constituídos por pessoas eleitas com o dinheiro das corporações. Como pode existir um sistema de regulação e controlo quando os reguladores são, de alto a baixo do sistema, pagos por quem devem regular? O Greenspan é simpático, pois confessa as maldades, inclusive as razões da guerra com o Iraque. Só que confessa, lamentavelmente, depois. No Tesouro entrou um executivo da Goldman & Sachs. Tutti buona gente. Mas sem dúvida que a revogação do sistema de regulação financeira nos Estados Unidos, no final dos anos 1990, foi rigorosamente um ataque organizado contra a economia real, batalhado pelos grandes especuladores, e vale a pena ver como se deu a votação. P: E esse "monstro" acabou por engolir os seus próprios pais? Greenspan teve azar - esperava gerir uma aterragem suave e acabou deixando o maior presente envenenado desde a Grande Depressão? R: No excelente documentário 'The Corporation', Michael Moore comenta esta estranha propensão das corporações, que são capazes de nos vender uma corda para alguém que queira enforcá-los, conquanto possam ganhar um dólar na venda. Neste sistema, se não houver controlo externo, político, sobre como são manejados os nossos recursos, simplesmente continuaremos a nos matar de trabalho para produzir um mundo de coisas idiotas, em vez de reduzir a jornada de trabalho, evoluir para um consumo menos denso em Barbies e mais denso em cultura, com maior presença dos bens gratuitos (família, passeios, festas, eventos culturais). O drama central está no facto de que estamos contaminando o planeta, destruindo a água, liquidando a vida nos mares, gerando um aquecimento global catastrófico, provocando a morte de dez milhões de crianças por ano por falta de acesso à água e à comida (isto não é crise?), vendendo armas em quantidades industriais em todo o foco de conflito - e dizíamos que a economia ia bem? O PIB estava crescendo? O Greenspan não tem grande importância, simplesmente dizia sim senhor aos mais fortes, e cruzava os dedos. Os seus grandes óculos davam a impressão de uma grande profundidade de reflexão. Mas o homem não viu o detalhe dos 680 biliões de dólares de derivados para um PIB mundial de 60, nem o dramático endividamento do governo e dos cidadãos americanos? P: Mas se o problema do combate à crise estava na injecção de liquidez no sistema financeiro, como os governantes alegavam, por que razão esse dinheiro não chega mais à economia real? R: Michel Chossudovsky, economista canadiano, estima que o dinheiro injectado nos bancos não está servindo para lhes devolver liquidez para que voltem a emprestar e a dinamizar a economia. Os bancos estão comprando activos baratos, consolidando ainda mais o seu oligopólio, ou simplesmente sentando em cima do dinheiro para reduzir a alavancagem. No caso do Brasil, Amir Khair mostrou que os cerca de 100 mil milhões de reais (33 mil milhões de euros) de apoio aos bancos os levou a aplicar o dinheiro em títulos públicos, lucrando com a elevada taxa básica do país (a SELIC, hoje em 11,25%), e com risco zero. Assim, além de lhes adiantar dinheiro público, a população paga através dos impostos a renda sobre o próprio dinheiro. Isto se chama "arquitectura financeira". Transformar dinheiro em investimento, identificando empresas promissoras, fazendo o seguimento dos potenciais económicos reais, é muito mais trabalhoso do que vender pacotes de papéis, os simpaticamente chamados "Structured Investment Vehicles", ou investir em outros papéis. O sistema financeiro simplesmente se desgarrou da economia real, esqueceu que constitui uma autorização pública para trabalhar com dinheiro do público dentro de parâmetros fixados por lei, e teoricamente sob controlo de um banco central. Ninguém estava (ou está) regulando mais nada. P: A solução em vez de injectar liquidez pode ser nacionalizar como defendem algumas personagens eminentes na América e na Europa? Ou isso não é mais do que socializar os prejuízos à custa do dinheiro dos contribuintes e com repercussões futuras na dívida e na gestão orçamental? R: Os crimes já estão sendo socializados. Perdem os poupadores, os idosos que não terão a poupança esperada, produtores que viram o seu dinheiro de caixa reduzido porque tinham aplicado em papéis mais rentáveis e assim por diante. Os biliões que saem dos governos para os bancos saem dos nossos impostos, logo dos nossos bolsos. Como não há milagre na economia real, o governo só pode gastar o que arrecada, e vai arrecadar menos por causa da crise. Portanto será obrigado a cortar em outras áreas, em geral saúde, educação e semelhantes. Alguém tem de pagar, e de preferência os usuários de serviços públicos, porque são mais pobres, e a capacidade de reclamar é proporcional ao rendimento. No que não for possível de cortar nos serviços, haverá aumento da dívida pública, que renderá juros aos que compram títulos da dívida, sendo evidentemente que estes juros serão pagos com os nossos impostos. O sistema é muito sofisticado e inteligente, como se vê. P: Porque simplesmente não se deixa falir o que não presta e não se abre terreno à criação de novos bancos? R: Essa é a proposta elaborada por David Korten, no seu recentíssimo trabalho "Agenda for a New Economy". Ninguém perderia nada em se fechando os grandes sistemas de especulação. Eles não ajudam na fluidez da moeda e na agilidade de financiamentos. Pelo contrário, são tantos intermediários, tantas complexidades burocráticas (em nome da solidez do sistema e da confiabilidade da casa) que tornam tudo mais pesado. O que precisamos não é mais "controlo", mas sim libertar os fluxos de recursos, desintermediando os financiamentos. P: Mas isso não é um pouco irrealista? R: Há hoje milhares de exemplos, desde o sítio na web Prosper que permite contacto directo entre poupadores e tomadores de empréstimos, até Organizações Não Governamentais (ONG) de intermediação financeira que trabalham na base da confiança nas comunidades onde conhecem efectivamente as pessoas e as oportunidades. O Placements Ethiques na França apresenta ONG de intermediação financeira que emprestam, que têm activos de grande porte, sem uma pirâmide de intermediários em cima. O sistema precisa de ser liberalizado, retirado das mãos dos atravessadores [intermediários] e dos especuladores, de forma a que o dinheiro volte a servir ao desenvolvimento. P: Fala-se muito do exemplo japonês desde os anos 1990 - que teria experimentado todas as técnicas anticrise, desde os juros a zero ao famoso quantitative easing, sem grandes resultados. O Japão foi o ensaio em pequeno do que se está a passar agora? Ou agora o problema é mais complexo? R: Há um pano de fundo em todo o processo, é que o sistema capitalista exige uma permanente dinâmica de expansão para não cair. É um sistema parecido com a bicicleta, só que gigantesco. Hoje com 60 biliões de dólares de bens e serviços produzidos anualmente, para 6800 milhões de pessoas, estamos produzindo cerca de 8 mil dólares por pessoa e por ano. Isto significa quase três mil dólares por mês por família de quatro pessoas. Ou seja, com o que produzimos hoje, todos poderiam viver de maneira digna e confortável no planeta. O problema é que o sistema produz, mas não sabe distribuir. Daí a necessidade funcional de um outro equilíbrio entre o Estado, as empresas e a sociedade civil organizada. O planeta está implodindo com os absurdos consumistas de um lado, com os dramas sociais de outro. O Japão está saturado, o japonês poupa mais, porque também já não sabe onde colocar mais uma televisão, mais uma bicicleta ergonómica. P: Mas qual a saída então? R: Há um grande horizonte de expansão, que é a inclusão produtiva dos 4.000 milhões de pessoas, que segundo o Banco Mundial estão "fora dos benefícios da globalização". Promovendo, é claro, um consumo inteligente, porque generalizar a produção de carros para expandir a General Motors não faz muito sentido. Sentido faz um exemplo coreano: acabam de colocar 36 mil milhões de dólares no programa de redução de emissões, financiando com dinheiro público a expansão de transporte colectivo e de alternativas energéticas, o que reduz as pressões sobre o clima. O programa, ainda por cima, gera 960 mil empregos, o que reduz, também, as tensões sociais. E ao promover a produção de bens ambientalmente sustentáveis e ao gerar mais empregos, promove a redinamização da economia. Esta convergência de visões de uma forma de financiamento (público e direccionado não aos bancos, mas às próprias actividades económicas), de um planeamento ambiental, de promoção do bem-estar social e de uma redução dos impactos da crise (uma verdadeira dinâmica anti-cíclica), aponta rumos claros e necessários. Basta o Japão olhar para o vizinho. P: Para terminarmos, a crise vai dar cabo dos BRIC, ou o grupo dos quatro inventado pela Goldman Sachs vai sair ainda mais reforçado? R: O problema é bem mais amplo. Temos uma economia mundializada, enquanto os instrumentos políticos são nacionais. Isto gera um imenso vazio de governança planetária, que permite não só a malandragem dos grandes grupos financeiros (inclusive com os seus criminosos paraísos fiscais), mas também os excessos das corporações do petróleo, das grandes empresas de intermediação de grãos ou de produção de gado que pressionam a desflorestação da Amazónia e de outras regiões, do oligopólio farmacêutico que se esqueceu completamente de servir a saúde das populações e assim por diante. De SIDA, já morreram 25 milhões de pessoas. De malária, morrem 2 milhões ao ano. Os oceanos estão tornando-se desertos, quando se trata da principal base de vida do planeta. Tudo isto não é crise? Temos 192 países membros da ONU, e cinco têm assento permanente no Conselho de Segurança, porque ganharam a guerra há 63 anos...Temos um novo equilíbrio planetário a reconstituir. Não se trata só dos BRIC, trata-se da imensa massa de pobres, dois terços da humanidade que não tem voz no que acontece. Trata-se das futuras gerações que não têm voz e que encontrarão devastações irreversíveis. E trata-se da natureza, que sangra silenciosamente. É tempo de ampliarmos a visão.

quinta-feira, 19 de março de 2009

ESTA GENTE

Esta gente cujo rosto Às vezes luminoso E outras vezes tosco Ora me lembra escravos Ora me lembra reis Faz renascer meu gosto De luta e de combate Contra o abutre e a cobra O porco e o milhafre Pois a gente que tem O rosto desenhado Por paciência e fome É a gente em quem Um país ocupado Escreve o seu nome E em frente desta gente Ignorada e pisada Como a pedra do chão E mais do que a pedra Humilhada e calcada Meu canto se renova E recomeço a busca De um país liberto De uma vida limpa E de um tempo justo Sophia de Mello Breyner Andreen, in Geografia 1967

O DEBATE QUINZENAL

Resumo Todas as quinzenas o Governo desloca-se à Assembleia da República para que, em reunião magna, se realize um debate sobre um tema que deveria ter sempre subjacente o interesse e a consentaneidade nacionais. O tema desta quinzena, “Os apoios às famílias” , da responsabilidade do Governo foi enunciado em linhas gerais como uma forte panóplia de medidas a que não correspondeu uma respectiva explicitação substantiva tendo em vista a adequada e real operacionalidade. Palavras chave Bota-abaixismo; Bota abaixo; Sem nível; Hipocrisia política; Duas caras; À vara larga; Uma nova geração de políticas sociais; Esquerda paralisada; Pare lá de falar; Mentira ; Arrendamento social; Pode concluir, Sr. Primeiro Ministro; Tem o topete; Discurso da inveja nacional; Oportunismo; Demagogia; Pacote mea culpa; Preocupante; Campeão das famílias; Ao contrário do que fez quando estava no Governo; Está-se a rir , mas não devia; Onde se foi meter; Ah! Ah !; Demagogo e securitário; Ganhar votos; Oportunismo político; Anda em conversinhas com o PSD; Diálogo em duas velocidades; Continuismo; Inglês técnico; Ria-se , Sr. Primeiro Ministro; Deu o premiozinho; Manuel Fino; Banca ; Estávamos completamente safos; Fazer brilharetes; Suprema lata; Não é sério; Muito bem! Iniciando a sessão parlamentar o Primeiro Ministro enumerou as medidas que o Governo tenciona promover como apoio às Famílias. Deveria em seguida iniciar-se o Debate. De tudo o que ali ocorreu, nem revendo os elementares princípios que devem regular um Debate, nem semanticamente investigando o termo num Dicionário ou verificando a correspondência num qualquer Glossário dos Regimentos das Assembleias, será possível descortinar um ínfimo indício de que naquela Câmara se realizou um Debate mormente entre os representantes do Povo e o Chefe do Governo desta Nação. (De)Bateram-se à deriva das palavras, das ideias vagas e escusas, das omissões e confusões de sentido, das toas e dos acordes da vã glória, do protagonismo gratuito e fugaz, do arremesso tardio e inconsequente, da recordação dos feitos passados e da pretensa supremacia actual. O Governo foi liminarmente dispensado de explicitar, de argumentar e muito menos de precisar o “como” e o ”quando” da acção que preconiza desencadear! O Debate da intenção e da acção governativas resumiu-se a um tempo de várias vozes com diferentes interpretações e entoações em matérias alheias e inconclusivas. A finalidade e o tema da reunião esvaíram-se no tumulto da tribuna. E o Povo ficou à espera! E como se tornaram esconsos e insondáveis os desígnios dos representantes do Povo! “ A nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda.” dizia Raul Brandão aludindo aos paroxismos da crise do fim do século XIX. Infelizmente, no dealbar do século XXI, estas ambivalências adquirem ainda um raro e forte sentido. 18/03/09 MJVS

quarta-feira, 18 de março de 2009

REVISTA OPS!

A Revista OPS!, dedicada à Economia e à Crise - Tempo de Grandes Decisões - já se encontra online em: http://www.opiniaosocialista.org/

domingo, 15 de março de 2009

A DESPEDIDA DE GABRIEL GARCIA MARQUEZ

Gabriel Garcia Marquez retirou-se da vida pública por razões de saúde: Cancro linfático. Agora, parece que é cada vez mais grave. Enviou uma carta de despedida aos seus amigos que, graças à Internet, está a ser difundida. A sua leitura é recomendada porque é verdadeiramente comovedor este texto escrito por um dos Latino-americanos mais brilhantes dos últimos tempos. "Se por um instante Deus se esquecesse de que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os outros param, acordaria quando os outros dormem. Ouviria quando os outros falam, e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate! Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto, não apenas o meu corpo, mas também a minha alma. Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperava que nascesse o sol. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas de um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à lua. Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas... Meu Deus, se eu tivesse um pouco de vida... Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas. Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo amor. Aos homens provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar! A uma criança, dar-lhe-ia asas, mas teria que aprender a voar sozinha. Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento. Tantas coisas aprendi com vocês, os homens... Aprendi que todo o mundo quer viver em cima da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta. Aprendi que quando um recém-nascido aperta com a sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo do seu pai, o tem agarrado para sempre. Aprendi que um homem só tem direito a olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se. São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas não me hão-de servir realmente de muito, porque quando me guardarem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer..." GABRIEL GARCIA MARQUEZ

quinta-feira, 12 de março de 2009

PARÁBOLA DO PORTUGUÊS EX-FELIZ

Por Asdrúbal da Purificação O senhor Barnabé Viçoso era um português como tantos outros, de barriguinha proeminente, com falta de cabelo no alto do cocuruto e um farfalhudo bigode por baixo do narigão vermelhusco. Apresentava-se como um devorador compulsivo das letras gordas dos jornais desportivos, sem grandes preocupações intelectuais que lhe tolhessem o cérebro, fanático de um clube que se encontrava na 1ª Divisão, amigo das patuscadas ao fim-de-semana e inimigo da azia e da dor de cabeça às 2ªs feiras. Possuía um carro japonês de último modelo e um apartamento duplex nas Olaias com cinco assoalhadas. Era director de departamento numa empresa multinacional de higiene íntima feminina, auferindo um ordenado acima da média. Estava casado há uma meia dúzia de anos com uma vistosa mulher de cabelos loiros, traseiro sólido saliente e seios empinados, com quem lhe dava gosto sair à rua e provocar inveja aos amigos nos convívios sociais. Em suma: a vida corria-lhe de feição. Era um gosto vê-lo, ostentando nos lábios um permanente sorriso de quem estava bem consigo e com o mundo, sempre amável e cortês para todos quantos com ele conviviam. Mas um dia (há sempre um dia…) algo começou a nascer de mansinho, que veio quebrar aquela santa paz, aquela beatífica e seráfica forma de vida. A desgraça, o opróbrio, o ostracismo ameaçavam-no a breve prazo. Insidiosamente, as televisões, as rádios os jornais, os membros do conselho de administração e os colegas da sua empresa, o porteiro, o padeiro, a mulher-a-dias, a esposa (a santa fada do lar) e a sociedade em geral, começaram a proclamar a toda a hora as virtudes medicinais, o segredo de bem-estar na vida e em sociedade, quiçá, em caso extremo, sobreviver, que outra coisa mais singela não era que passar a vestir de cor-de-rosa desmaiado, incluindo a roupa interior (homens e mulheres), ingerir alimentos cor-de-rosa, raciocinar em cor-de-rosa e ser tementes e reverentes ao Chefe todo-poderoso e às demais autoridades do Estado que ele dominava com mão de ferro. Mais, a moda avançava tão rapidamente, que todo aquele que não aderisse a ela arriscava-se a ser desprezado, despedido do emprego, marginalizado pelos amigos e pela família, banido da sociedade e, quem sabe até, vir a tornar-se num sem abrigo. Idolatrar o chefe cegamente, incensá-lo na penumbra das latrinas, admirar-lhe as suas imaculadas camisas brancas por baixo dos fatos cinzentos impecáveis, como o de uma recatada virgem conventual, sorver e decorar avidamente os seus discursos, as suas intervenções, acompanhadas de gesticulações robóticas, botadas numa maravilhosa voz fanhosa, só possível graças à natureza, que generosamente o havia dotado de uma penca estilo broca de cavernas, era o dever de todo o cidadão. É evidente, que à semântica hermética das suas faladuras ao povo, só os acólitos mais próximos tinham acesso, o condão de as descodificar e retransmitir ao povoléu. De entre eles, fervorosos e reverentes merecem destaque o sub-chefe “boquinha-cu-de-galinha” e o contra-chefe “malhar-na-direita”, lídimos espécimes vivos invertebrados fora de água salgada. O que trazia atormentado, pois, o senhor Barnabé Viçoso era o facto de ser daltónico, e por tal facto, ter dificuldade em destrinçar a cor-de-rosa desmaiada do vermelho, ou outra cor aparentada, facto que lhe começava a complicar gravemente a vida no seio da nova sociedade que anunciava uma nova era.

terça-feira, 10 de março de 2009

O CONTROLO DA OPINIÃO PÚBLICA

Por P.M.P. ”Aqueles que pretendem entender o passado e moldar o futuro devem prestar muita atenção não apenas às suas práticas, mas também à estrutura doutrinária que as sustenta.” Noam Chomsky Há mais de 260 anos, David Hume, ao abordar a problemática da obediência civil, chegou à conclusão que o governo de uma nação se baseia no controlo da opinião, princípio que abarca todos os governos: as ditaduras civis, as ditaduras militares, os nepotismos e até, as democracias. Assim, na prática, de acordo com a gestão das democracias ocidentais, a população pode ser “espectadora”, mas não “participante”, salvo quando coloca o voto na urna no acto eleitoral. Ou seja, na ocasional escolha de líderes partidários, porque onde se definem os verdadeiros rumos da política, é no campo económico, área de onde a população em geral deve de ser excluída. Desta forma, existem doutrinas concebidas para impor o novo “espírito” da “democracia” segundo os moldes neoliberais, esta, de resto, actualmente em crise. Para os teóricos do controlo das massas, a manipulação consciente e inteligente dos hábitos e opiniões organizadas das massas constituem importantes componentes das sociedades ditas democráticas. Por tal forma, as minorias informadas para atingirem os seus objectivos, devem fazer uso contínuo e sistemático da propaganda. Uma vez que compreendem os processos mentais e os padrões sociais das massas, podem manejar com relativa facilidade a opinião pública, dado que a referida sociedade consentiu em aceitá-la sem se manifestar, por desinformada que está. A importância do controle da opinião define-se claramente à medida que a sociedade organizada consegue ampliar as modalidades de democracia, fazendo emergir, aquilo que as elites liberais denominam eufemisticamente de “crise da democracia”, que sucede quando as populações relativamente apáticas ou passivas se organizam e tentam penetrar na esfera política na procura dos seus interesses, “lesando” os interesses da “ordem” e da “estabilidade” da classe dominante. Neste âmbito, a minoria informada assume-se como uma “classe especializada”, responsável pelo estabelecimento de políticas de governo e pela “formação de uma sólida opinião pública”, pelo que, deve encontrar-se distanciada da interferência do público em geral, este, formado por pessoas “ignorantes e intrometidas, alheias ao processo”. O povo deve ser “colocado no seu devido lugar”. “Aprender” a sua função, ou seja: a de “espectador da acção”. Nas sociedades de regras democráticas mais amplas, nas quais, for força da lei e dos costumes não se deve recorrer à força, os administradores políticos fazem uso de sofisticadas técnicas de controlo, amplamente baseada na propaganda. Se o leitor reparar, este tipo de actuação é aparentado à boa e velha doutrina leninista! A similaridade entre a teoria democrática progressiva {neoliberal} e o marxismo-leninismo é notável. O quadro sumário aqui referido é vulgar numa sociedade gerida pelos interesses das grandes fortunas, que gasta quantias astronómicas em marketing. Os exemplos, nas ditas democracias ocidentais, saltam aos olhos de qualquer cidadão mais atento. Atente-se ao Portugal de hoje. Um exemplo paradigmático.

CARTA ABERTA A MANUEL ALEGRE

Faço parte do milhão que o apoiou, mas recuso-me a entrar no “freezer”. Não porque tenha medo do frio, mas porque foi um acto deliberado e de plena liberdade que me fez acreditar que ainda era possível dar calor ao Futuro. Nesse tempo, e tal como hoje, agi de acordo com o ideário que me vincula à tolerância, à solidariedade e acima de tudo à Liberdade que dignifica e valoriza a pessoa humana. E porque era o garante e a voz que sempre e de novo promovia esse ideário acorri e juntamente com tantos outros demos força à sua campanha. Fomos um milhão. Um milhão a acreditar na palavra da Esperança, da Mudança, do Ser e do Fazer em cada um o Portugal de todos. Não vencemos, mas ficou-nos a certeza de que aquele era o Homem e que o momento nos juntara. Hoje, os que nos têm congelado o horizonte da vida pretendem que fiquemos hirtos, monocórdicos, abúlicos como o “freezer” que lhes vai arrefecendo a alma num tóxico seguidismo sectário e interesseiro. E por isso é tempo de lhe dizer, ao Poeta, ao trovador, ao resistente, ao fundador socialista, ao homem livre, que não abandone a “ Praça da Canção” e que nunca deixe esmorecer a força das palavras que inventou: “ E tu que do País fizeste a triste cela tu que te fechas em teu próprio cativeiro tu saberás que a Pátria não se vende e em cada peito em cada olhar se acende este vento este fogo de lutar por ela. Tu saberás que o vento não se prende.” E eu, sem “e” ou “senão”, porque não milito em qualquer Partido, porque não integro qualquer Movimento a não ser o da aposta no Portugal que Abril redimiu, declaro-lhe que continuarei renitentemente a transcrever as palavras do Poeta porque elas vêem a alma. “ É triste: uns vestem-se de Abril outros de trapos Tu ó estrangeiro é só por fora que nos olhas”. MJVS

domingo, 8 de março de 2009

VEMOS, OUVIMOS E LEMOS E... NÃO QUEREMOS ACREDITAR !

CONVERSAS FÚTEIS

Inicia-se nesta nova rubrica uma série de curtos episódios organizados em cenas cuja concatenação é aleatória e que tem a estulta ambição de retratar a Futilidade Nacional. CENA A 13/03/09 Viviam-se tempos de grande agitação diplomática. A alta hierarquia governativa, ainda na ressaca da visita efectuada pelo Presidente da grande e parceira Nação Africana, reerguida e louvada pela sua ímpar explosão económica, já se alinhava no aeroporto de saída para os trópicos. Como fora difícil em tão curto espaço de tempo largar um para apanhar outro. Assim pensava o CAP (Comandante Auxiliar do Protocolo) que inseguro da sua bagagem corria entre a grande comitiva que envolvia o Chefe do Governo. A bagagem diplomática tinha atendimento prioritário, pelo que seguramente a sua nova Samsonite chegaria ao destino. Não podia dispersar as energias já que se delineava uma grande actividade protocolar nesta visita que assinalava de uma forma invulgar o 4º aniversário da governação. Ela seria o palco ideal e oportuno para relançamento e promoção das “jóias da coroa”– as novas tecnologias e o Simplex. Dois ícones inconfundíveis, dignos do maior relevo e culto. Chegaram, num grande jacto pejado de empresários e políticos que, apesar da turbulência, se mantinham erectos e determinados. Como era agora tudo tão diferente. Os deportados do tempo antigo que, na sombra da noite, partiam apinhados em galeras decrépitas, tinham dado lugar a este séquito de representação nacional, digno de recepção maior naquele amistoso solo insular. Já os holofotes apontavam a escada movível por onde todos sairiam de acordo com a suprema hierarquia quando a SEC (Secretária da Eminente Corporação) em tom solene e insistente o abordou: - Não se esqueça de contar e recontar toda a bagagem do Governo. Quanto à minha, deverá dar-lhe prioridade pois sou a responsável pelos eventos tecnológicos. - Mas, minha senhora, vai ser impossível reconhecer a sua bagagem. Creio que vem toda no bloco diplomático. - Vai reconhecê-la de imediato porque além de ser cor-de-rosa está apensa às malas azuis Magalhães-byte, a nova linha nacional de malas de viagem. - Agora entendo o que vi no Aeroporto, em Lisboa. Foi um logro tremendo. Pensei estar a visionar uma réplica do filme “ Olha, aumentei o portátil”. - Bem, os portáteis Magalhães também vêm e claro dentro delas! Trata-se de mais um novo contributo do nosso significativo, valioso e singular programa Simplex Tecnológico! MJVS Cena B 03/03/09 No grande senáculo da Nação, morada da Assembleia da República, prepara-se o início de uma reunião magna parlamentar. No vestíbulo da entrada, ainda ofegantes pelo exercício matinal que lhes fora exigido para romper as filas intermináveis de tráfego que atolavam pecaminosamente o caminho para tão ilustre destino, chocam duas putativas estreantes tribunas: a graciosa e imponente deputada do Partido da Esquerda Democrática e a frágil e insignificante colega do Partido da Direita Conservadora. Espantadas com a apresentação que cada uma ostenta, analisam-se e reagem de imediato com a curiosidade adequada: - Que lhe aconteceu? Nunca a tinha visto de óculos escuros. São muito arrojados e favorecem-na assertivamente. - Se favorecem, nada posso dizer, mas que me escondem as olheiras da noite mal dormida, tenho a certeza. Foi uma gentil oferta da líder do meu Partido. Ofereceu-mos ontem, na Figueira da Foz, após a realização da Conferência sobre Saúde - Que sorte! O meu líder ainda nada me ofertou, a não ser o nome do selecto estabelecimento comercial onde se veste. E isso foi uma oferta excepcional da qual tirei proveito imediato. - Claro que foi. Quem me dera estar tão bem situada no ranking dos elegantes deste Parlamento como está a cara colega. - Tem toda a razão. Espero ser a seleccionada para as compras de Natal, já que estou mesmo no topo das sondagens. - Mas vai comprar prendas para toda a Assembleia? Isso é uma afronta aos pobres cidadãos que nos elegeram. - Não caia nesse logro, colega. Trata-se apenas da compra do presente de Natal para o nosso líder e primeiro entre os primeiros. - Não conte comigo para isso. Afinal que pensa comprar-lhe de tão exigente que mereça tantas sondagens? - Espanto-me com a sua falta de visão de futuro por tão óbvia que se torna demasiado evidente a minha selecção. Será um belo sobretudo para condizer com o fato que lhe foi oferecido no último Natal pelos seus Pares. MJVS

quinta-feira, 5 de março de 2009

O Congresso do Simplex

A ideia era simples e de fácil execução. Pretendia-se realizar um Congresso coeso, pacífico, cordato, forte de imagem e de liderança. A sala fora arrumada e direccionada para a bancada do já eleito Secretário-Geral e da presidência de tão importante evento. No mesmo palco e logo à esquerda juntavam-se quatro ou cinco dignitários possivelmente de alta patente constituindo todos, em uníssono, o único aglomerado passível de ser visionado e perscrutado. Um fundo luminoso azul emprestava-lhe além do destaque merecido a cor adequada. Longe e protegido do voyeurismo demagógico, o cenário era simples e feérico. A festa da celebração estava montada! E foi assim, acantonados “na ré” do Pavilhão que os jornalistas e as cadeias televisivas fizeram a cobertura deste potestativo acontecimento. Tantas figuras irreconhecíveis, simples silhuetas anónimas de costas voltadas para as câmaras, se postavam pelas sucessivas filas de mesas paralelas ao palco. Nem na celebração religiosa dominical era possível uma visão tão profunda dos dorsos dos fiéis presentes. Estava tudo programado, predito, organizado conforme as normas eficientes de um marketing criterioso. E as reacções eram unânimes. As palmas chegavam ruidosas, desligadas de trejeitos, de sorrisos que os rostos escondidos se escusavam de mostrar. A palavra era de César e “a César o que é de César”! Não era tempo para discussão, para aferição, para reflexão, mas sim para o espectáculo, para a ovação, para a entrega rendida, para os prémios merecidos. Este era, enfim, o verdadeiro tempo real da magna política doutrinária Simplex: o que é simples é fácil e toda a gente aplaude! MJVS

segunda-feira, 2 de março de 2009

ESTÓRIAS EDIFICANTES

O SENHOR MINISTRO Por P.P. De fato de alpaca cinzento-escuro, de corte irrepreensível, assinado por um famoso estilista europeu, o senhor Ministro empurrou as largas portas de vidro do enorme edifício de linhas arrojadas e estilo indefinido, pintado de cor-de-rosa e verde alface, da autoria de um famoso arquitecto. Acelerou célere o seu passo elástico, na direcção do elevador que mais parecia um autocarro em hora de ponta, apinhado de gente sem um esgar no rosto, vestidos de igual modo cinzentão ou azul a dar para o preto, tal como o chefe, ao mesmo tempo que ia distribuído e retribuído bons-dias corteses à esquerda e à direita, para trás e para a frente, deixando à sua passagem um rasto impregnado de um odor forte, ligeiramente adocicado, a Paco Rabane. Enquanto o ascensor subia rápido e silenciosamente até ao piso onde se situava o seu gabinete, aproveitou, para ao tacto com a mão direita confirmar da perpendicularidade e alinhamento da sua gravata de sede Pierre Cardin de cor azul cueca, sob uma camisa Givenchy imaculadamente branca – à moda – como a dos empregados de mesa dos restaurantes, de punhos dobrados seguros com botões de cristal, ajeitando com a mão esquerda de encontro a si, a pasta de pele de crocodilo e fechos dourados, para não incomodar uma secretária que se encontrava ao seu lado, de saia e casaco cinzentos, com a lapela direita adornada por um enorme e fulgurante broche aparentando uma rosa estilizada. Sobressaíam do opulento peito arfante da senhora, imensos folhos brancos, tantos, que mais parecia uma couve flor antes de entrar na panela. Penetrou no seu amplo gabinete climatizado, alcatifado quase até aos artelhos, de paredes revestidas por madeira exótica e amplas vidraças a partir de onde relançou o seu olhar faiscando omnipotência, por cima dos mastodontes de betão das redondezas e até ao horizonte próximo semeado por uma miríade de barracas de tábuas cobertas de chapas de lata, onde vegetavam milhares de potencias votantes, o senhor Ministro recostou-se na poltrona de coiro e debitou de rajada umas quantas cartas para um gravador portátil. Pelo telefone interno intimou com ar autoritário para a sua secretária lhe trazer café e bolachas. Disputou durante largo tempo, afanosamente, no computador, um jogo de estratégia on-line e deu uma vista de olhos pelos títulos dos periódicos matutinos que a sua subalterna submissa, diligentemente lhe trouxe com o pedido. Chupou dos dedos o resto do açúcar das bolachas, desfolhou enfastiado uns dossiers com matéria para despacho, que se encontravam pousados numa ponta da secretária, colocando-os na outra ponta da mesa sem mais delongas. Entrementes, o relógio que se encontrava a decorar a mesa de reuniões fez pi-pi, pi-pi, pi-pi, lembrando-lhe que era meio-dia, hora de almoço. Pontual e metódico, o senhor Ministro desimpediu parte da secretária de duas folhas A4 em branco e um jornal desportivo datado da véspera, colocou nela a sua mala de pele de crocodilo de onde tirou o único conteúdo desta; um molho de nabos. Sem os descascar, pôs-se tranquilamente a degluti-los incluindo a rama, até entrar na fase da ruminação. Era graças aos nabos, a essa iguaria em abundância na sociedade em geral e no seu partido em particular, que tragava diariamente, antes até, de ser secretário-geral do seu partido, que havia ascendido ao lugar de Ministro. OS MAREANTES Por P.P. Alcandorado numa alta escarpa que se precipitava sobre as profundezas do oceano, de semblante fechado e olhos semicerrados, sombreados pela aba desabada do chapéu de feltro andaluz, o Infante perscrutava o horizonte marítimo até onde a linha de água se irmanava com o azul do céu. O rumorejar das vagas que vinham transformar-se em espuma branca, de encontro ao promontório, misturava-se com o assobio sibilino do vento suão. Já o sol havia mudado de quadrante no relógio de pedra ali por perto, carcomido pelas intempéries, quando ao longe se começaram a divisar velas brancas de uma caravela que de ora em vez se sumia de vista na cava de uma vaga mais alterosa. Quando a cruz de Cristo se divisou, enfim, o Infante pigarreou, expeliu de um jacto para o chão a gosma e disse com voz aflautada àqueles que o acompanhavam silenciosamente apreensivos desde há um ror de dias: - Quem porfia sempre alcança!. -Obtendo como resposta, um fundo suspiro colectivo de alívio e um acenar de cabeças em sinal de assentimento. Decorreram ainda quase duas horas até a caravela arribar a porto seguro numa enseada a que chamavam… bem, isso também não interessa para a estória… tendo-se nesse meio tempo procedido aos preparativos de boas vindas dos argonautas. O sol encontrava-se no ocaso. Fundeada que foi a âncora, dois escaleres foram baixados onde os marinheiros embarcaram rumo à praia. Gritos de exclamação e de alegria misturavam-se entre os que vinham e os que estavam. A confraternização durou pela noite dentro em redor das fogueiras. Alegraram-se os corações e os corpos com as viandas e o vinho mais umas moçoilas liberais, produto da região. Para o fim da noite, não podendo mais conter a sua impaciência o Infante interrogou o capitão da nau: - Afinal que novidades me trazeis? – Serão de tal monta desagradáveis, que por tal razão tendes estado estas horas tão ensimesmado? – Ao que o argonauta respondeu estremecendo: - Para lá do Bojador não passámos, meu senhor e se mais longe não fomos em nossa derrota, foi porque entrementes uma tempestade medonha estalou. Mar e céu desfizeram-se sobre nós e do meio da tormenta nos surgiu uma horrenda criatura, disforme no tamanho e de carão sinistro, que trovejou por cima das nossas cabeças dizendo: - Não ouseis avançar neste mar que é meu, porque se o fizerdes rogo-vos como praga que a vossa nação seja para sempre conhecida pelo «Portugal dos pequeninos». - Esta é a razão porque estamos de volta sem termos ido mais além, meu Infante. – Disse o capitão. Não obstante este aviso, que acabou por não ser levado a sério pela corte, os portugueses foram mais tarde e durante décadas, muito para além do Cabo Bojador, vindo Portugal a tornar-se com os tempos, «dos pequeninos». IN ILLO TEMPORE Por P.P. Já a noite de manso se avizinhava, quando o cavaleiro encetou a jornada há muito programada como objectivo de crucial importância. Tocando a montada, meteu a trote lento por um pedregoso caminho densamente arborizado que o cavalo parecia conhecer. Súbito, chegaram ao sopé da montanha. A partir daí a viagem tornou-se mais difícil. Um escarpado carreiro serpenteava serra acima por meio de silvados. A noite desceu e a lua subiu cheia, prateada, acompanhada pelo piar lúgubre das aves nocturnas. As ferraduras faziam chispar faíscas dos seixos, que na andadura rolavam por baixo dos cascos da alimária, à qual, o cavaleiro dava rédea. O luar transmitia às árvores, aos arbustos que se prendiam na capa do cavaleiro, a tudo, um ar irreal, fantasmagórico de tal ordem, que até as pedras pareciam animadas por vida própria. Corria uma leve brisa gelada. Passadas que foram mais de três horas de marcha, cavalo e cavaleiro encontravam-se quase no topo da escalabrada montanha, onde se avistavam as torres pontiagudas de uma fortaleza. O piar grave de um mocho de olhos esbugalhados, empoleirado num galho de uma árvore seca à beira do caminho, fez com que o cavalo se empinasse assustado. O cavaleiro susteve-o pelas rédeas acalmando-o com palavras breves. Retomaram a marcha e passando a ponte levadiça da fortaleza, que foi baixada lentamente, transpuseram o fosso circundante, passaram um enorme pátio iluminado pelo luar e estancaram frente ao enorme e bruto portão do casarão principal. Luzes não se avistavam para lá das portadas fechadas nem som havia que supusesse vivalma. O cavaleiro berrou: - Ó da casa! – Berro que se prolongou num eco pelas ameias da fortaleza. Respondendo, o portão começou a abrir-se num vagar rangente dos seus gonzos ferrugentos, numa desgraçada chiadeira. Segurando a candeia de luz tremeluzente por baixo de um narigão vermelhusco e verrugoso, um corcunda de idade avançada assomou pela frincha do portão e continuando a abri-lo disse: - Boa-noite senhor! Esperam-vos. Avançando, o cavaleiro desmontou passando as rédeas do equídeo ao porteiro e, passando a entrada, encaminhou-se em direcção a uma ténue luz que se coava através de uma porta entreaberta. Empurrou-a e entrou num amplo salão. A um canto, uma enorme lareira queimava grossos troncos de árvores centenárias. Única luz ambiente. Ao meio, três homens de idade imprecisa, de longas barbas brancas, envergando longas túnicas vermelhas, circundavam, sentados em fortes cadeiras de alto espaldar, uma mesa redonda, sólida e maciça. À entrada do cavaleiro, que ostentava longas barbas brancas e envergava uma túnica idêntica aos outros três, os mesmos levantaram-se cumprimentando-o sobriamente, com uma ligeira inclinação de cabeça, voltando a sentar-se. Uma cadeira encontrava-se vaga. Estava-lhe reservada. Sentou-se. Após um curto silêncio, o mais velho dos cavaleiros, aquele que ostentava as mais bastas barbas, tomou a palavra dizendo: - Há séculos que te esperávamos. Finalmente que nos conseguimos reunir, em circulo, num quadrado perfeito. A partir de agora podemos tomar decisões para este terceiro milénio. AMOR À PORTUGUESA Por Asdrúbal da Purificação Regressava da escola a minha casa, que ficava mesmo no coração de Alfama. Na entrada do beco, um grupo de vizinhas rodeava a Dona Genoveva que morava no 1º andar do número onze. Esta tinha o rosto decorado por uns novos «óculos escuros». Orlavam-lhe os olhos – e não só – enormes manchas negras de sangue pisado. Encimava-lhe os lábios, um bigode à Clark Gable a que lhe eu ouvia chamar buço. Percebi entre os murmúrios em surdina, palavras que variavam da indignação ao «coitadinha». Eis senão, quando saindo de sua casa assomou-se junto do mulherio o marido, que tinha por «nobre profissão» ser carteirista de dia e fadista à desgarrada, nas noitadas das tascas do bairro e não só. Vinha apinocado de fato preto às ricas brancas, de sapatos de verniz a condizer e peúgas brancas, gravata vermelhusca e cocuruto aplainado com brilhantina, ou gel, como agora se diz. Uma das vizinhas mais afoita, a Dona Georgina, varina com banca na rua de S. Pedro, perguntou-lhe: - Oiça lá ó seu Raimundo, que raio é que aconteceu a sua mulher que coitadita até parece que foi escoicinhada por um burro?. - O Raimundo, esboçando uns esgares condoídos respondeu-lhe perante o silêncio do mulherio e as fungadelas da consorte: - Sabe Ti Georgina, foi um azar do camandro o que aconteceu à minha esposa! Foi isso mesmo. Ontem, mal entrei em casa, a minha Genoveva louca de alegria de me ver – sim, que ela só tem olhos para mim – veio pelo corredor fora desde a cozinha de braços abertos para me abraçar, mostrando a cremalheira de risonha que estava. Acontece que tropeçou numa tábua solta do sobrado e zás… caiu com a cara nas minhas mãos. Foi mesmo um azar do caraças! O VOO Por P.P. Num golpe de asa, inflectiu para a direita e encetou um voo picado em grande velocidade. No percurso para o objectivo, a deslocação do ar provocava um assobio imperceptível em toda a sua estrutura. Quase no limite da aproximação do local de aterragem, «travou» a descida e curvou para a direita em voo rasante, lento, oscilando as asas graciosamente. A área que sobrevoava era extremamente irregular; ora lisa, ora cortada por profundos canais, ora montanhosa e coberta por vastas extensões de floresta banca e negra, impenetrável. Nisto, a enorme mancha sobre a qual voltejava, pareceu deslocar-se, aparentando assustar a nave, porque esta, mudou rapidamente de rumo, ascendendo velozmente aos céus. No espaço, como uma estação orbital, esperava-a oportuna uma pista de aterragem feericamente iluminada como se fosse um arraial popular. Aproveitou a escala estratégica para lavar os seus radares, o trem de aterragem e alijar carga que de repente se tinha tornado desagradável e incomodativa. Após aquela - que entendeu - merecida pausa, levantou de novo voo, rumo à sua enigmática e insondável missão. De novo, em breve tempo se encontrou de regresso à última área por onde havia pouco tempo antes voltejado. Evoluiu em acrobacias, uma, duas, várias vezes por cima da mesma superfície - afinal - oscilante, quase redonda, recoberta de matagal. Voou distanciando-se dela, na procura de um ponto de observação estratégico do seu alvo. Na procura de uma pista fixa, conseguiu divisar uma imensa clareira branca no sopé da enorme montanha coberta da tal vegetação. Lesta, dirigiu-se rapidamente para lá, conseguindo a proeza de uma aterragem quase perfeita. Eis senão quando, o exterminador, o mata-moscas se abateu sobre ela. A velha mosca varejeira finava-se assim, ingloriamente, depois de durante muitos meses ter infernizado a vida de centenas de milhar de pessoas envolvidas na reforma da educaçãozinha.

domingo, 1 de março de 2009

DA CRISE

Portugal está cada vez mais um país de nuvens negras salpicado por um céu azul. Apesar deste Inverno ter sido rigoroso, com dias consecutivos de neblina e grande pluviosidade, o céu emergiu de quando em vez em azul tímido, pálido e envergonhado sem a luminosidade do Sul. É da crise. Diz-se e rediz-se que a confiança dos portugueses atingiu o ponto mais baixo dos últimos anos. A maioria das famílias vê com apreensão senão já o presente, o futuro ameaçado pela falta de recursos. As dificuldades financeiras amordaçam o sorriso e moldam a inevitabilidade da miséria. É da crise . Os bancos esconderam os ainda recentes lucros inimagináveis e num ápice apresentam rupturas de triliões (cifras quase impronunciáveis) às quais céleres e prestativos os governantes acorrem com paliativos oportunos que os portugueses irão pagar. É da crise. As multinacionais, empresas semeadoras de muito emprego barato, reduzem os postos de trabalho, despedem, encurtam o horário de laboração, impõem o ”lay off” e fecham portas “na calada da noite”. É da crise. Os quadros, os trabalhadores anónimos, os casais que labutam na mesma fábrica, o homem ou a mulher que carrega horas de trabalho ininterrupto na intempérie do campo, no calor abrasador da caldeira, na agrura da rua que chegam ao fim do mês sem salário, com contratos falsos, assediados por mil venenos e que se obrigam a voltar na esperança de reaver o que lhes foi sonegado. É da crise. Os pobres que “reempobrecem”, os mendigos que mendigam, os sem-abrigo que enchem as ruas e aumentam todos os dias, a nova míngua escondida no vão de escada que mal sobrevive com o rendimento social. É da crise. A palavra proibida que se cala, o medo da delação que persegue, o grito que se prende perante o assédio, a vénia da imposição que se aceita, o pavor dos dias incertos que se propaga. É da crise. Os segredos que se escondem nos rostos risonhos dos governantes que levam os deputados a sancionar em Assembleia Parlamentar medidas tão contrárias aos anseios dos seus eleitores. É da crise. E os congressos dos Partidos Políticos com gigantesca promoção mediática que prometem definições de linhas programáticas fortemente apostadas na defesa do bem comum e da democracia partilhada, mas que jamais são promulgadas. É da crise. Será que o devir deste país que se enferma endémica e sistematicamente é o anátema da crise? MJVS